Sanderson Nascimento Soares[i]
Geraldo Martins[ii]
RESUMO
A partir do caso de M. como ponto de sustentação da psicanálise clínica, o presente texto pretende marcar na prática os conceitos de histeria, olhar e pulsão escópica elaborados por Freud.
Palavras-chave: Histeria. Olhar. Pulsão escópica.
O sujeito da psicanálise se constitui a partir da experiência da satisfação originária, na qual a criança elimina a tensão excitada pela fome. A intensa satisfação provocada por esta experiência deixa um traço mnêmico. Traço este que a criança tentará reeditar durante a vida, pois imagina o Outro, cuja palavra lhe oferece, como detentor de tudo que possa ser desejado por ela.
Assim, a criança demanda ser desejada, tocada, encantada e olhada pelo Outro, logo, o seu desejo é ser o falo, o único objeto suscetível de preencher a falta do Outro. Todavia, o olhar do Outro é desviado, sua ausência ou falta coloca em xeque o lugar supostamente ocupado pela criança no desejo do Outro, lançando-a na dialética do ser ou não ser, o falo. Vê e ser vista, eis a questão de M.
O caso de M. aqui apresentado não escapa a esta dialética. M. do sexo feminino tem 19 anos. A demanda de atendimento psicológico é vinculada por ela a ataques de pânico que ressurgiram no momento em que passa a residir em outra cidade com um amigo seu e da família. Seu amigo D. como o nomearemos aqui, possui 47 anos, é casado e tem uma filha.
M. sempre inicia os atendimentos perguntando se terá que contar tudo novamente ou perguntando o que era desejo do analista saber. No princípio de um dos atendimentos M. diz que irá contar o episódio, possivelmente, o episódio que mascara a sua questão, então M. revela “no episódio anterior, igual ao Dragon Ball Z”.
Nos atendimentos anteriores a esta fala, M. constitui, a partir de seu relato, uma cena na qual é desejada, sobretudo, olhada, vista. Seu amigo D. a vê como filha, contudo, segundo M. “ele faz uma quadro da filha nua e coloca no quarto dela”, “é como se ele tivesse me visto nua”. Para ela existem câmeras escondidas em seu quarto ou no banheiro, apesar de não ter encontrado nada.
O quadro de M. nua pregado na parede incita a cólera, a ira “ele é nojento, otário” e conclui “ele é pedófilo”. Em seu artigo “A cabeça da Medusa”, de (1940[1922], p. 289), Freud afirma: “O terror da Medusa é assim um terror de castração ligado à visão de alguma coisa”. Nas obras de arte, os cabelos da Medusa são representados por serpentes. Serpentes estas que nos remetem à castração. Assim como Medusa, M. sofre do medo de ser “decapitada”, ou seja, castrada. Segundo a mitologia, a visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror e transforma-o em pedra. Neste sentido, M. ao ver a serpente, o Dragon Ball que está presente na forma de ausência no quadro dela nua, provoca a certeza da falta, a falta do Dragon enquanto substituto do pênis, marcando que o outro tem o Dragon ou o pênis que ela não tem.
Assim que M. passou a morar com D., ele institui que ela não poderia trancar a porta do quarto. Durante a noite D. frequentemente entra no quarto de M. para fechar a janela. Neste instante, M. finge estar dormindo e supõe: “ele estava me olhando”. M. se diz segura no quarto, “assegurada”, ou seria a ser segurada. Todavia, sente nojo de D. por entrar no quarto dela quando está dormindo, por isso ela pede a ele que não entre mais no seu quarto quando ela estiver dormindo. Porém, esta cena se repete, pois, a porta do quarto está sempre aberta para D. entrar e fechar a janela deixada aberta por M, que por sua vez ainda não consegui fechá-la.
M. indica ao analista qual o horário que é passado na tela de sua fantasia o episódio do Dragon Ball Z ao indagar: “será porque à noite tenho mais medo do que de dia?”, sem pestanejar responde: “as coisas acontecem à noite”. À noite o Dragon aparece, mesmo não sendo possível vê-lo, pois finge dormir, o que provoca raiva e nojo em M. Contudo, sua aparição deixa um resto noturno que ofusca, petrifica os olhos de M. quando se vê nua no quadro pregado na parede do seu quarto. A presença do falo, encarnado aqui pelo Dragon, presentifica a ausência do pênis de M. Daí talvez M. brigar e ameaçar D. dizendo que irá sair da casa dele se ele não retirar o quadro de seu quarto.
Este sentimento de repulsa é justificado por Freud em “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”, texto de (1910, p. 102) quando diz: “Antes da criança ser dominada pelo complexo de castração […] começa a exteriorizar um intenso desejo visual, como atividade erótica instintiva. Quer ver os genitais de outras pessoas”, sendo, o olhar inicialmente empregado a fim de compará-lo com o seu próprio órgão genital, mas a descoberta de não possuir pênis provocará o sentimento de repulsa.
Nos momentos de crise, M. treme, fica tonta e seu coração dispara, todavia diz: “todo mundo fica perto”. Quando sua namorada ameaça se suicidar, M. relata: “caí no chão feito merda, rolando pra lá e pra cá, chorando e tremendo”. A histérica é quem melhor revela que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Ela oferece seu corpo como palco de gozo, no qual o sujeito obtém algum tipo de satisfação, apesar de seu sofrimento ou desprazer, numa encenação visual, no qual o sujeito que fita-lhe encontra-se retido, petrificado, pela mostração produzida. Talvez por isto M. tenha ficado indignada com a namorada que despreza sua atuação dramática embalada pela anunciação do suicídio “eu fico lá preocupada, passando mal, nervosa, caio no chão e ela vem me perguntar por que eu estou assim”.
Assim sendo, o episódio frequentemente repetido no discurso de M. é o episódio na qual ele é olhada, ora por seu amigo D., ora pela sua namorada. Todavia, M. apresenta não somente o desejo de ser vista, mas também o de ver, pois “a noite fica pior, fico com medo do escuro, não tem luz, não da para ver nada”. Na pulsão escópica está explícito a questão do olhar, do vê e ser visto pelo Outro.
Quinet afirma em “Um olhar a mais”, texto de 2002 que no campo escópico:
A aspiração da histérica é ser vedete (de vedere, ver), ou seja, ser o centro dos olhares para agradar ao mestre estimulando seu desejo. Porém, vedetta, em italiano, que deu origem ao termo em português, significa também um lugar elevado onde se coloca uma sentinela, lugar privilegiado para olhar (QUINET, 2002, p. 196).
Segundo Quinet (2002, p. 11) “a pulsão escópica […] confere ao olho a função háptica de tocar com o olhar, de despir, de acariciar com os olhos”. É exatamente esta a função do olhar de D., uma vez que, M. o descreve como aquele que somente canta e toca, como o provedor, ou não seria, aquele que com seu olhar encanta e toca-lhe, logo, o Dragon Ball Z encarnado.
A fim de ser olhada M. provoca o olhar do outro através de seu corpo produzindo assim um jogo com o olhar, semelhante ao jogo de esconde-esconde, na qual ela se mostra e depois se esconde. Segundo M. seu amigo diz: “eu sou tudo, toco muito, canto muito”. Este jogo produz uma satisfação mútua, pois M. diz “não tem jeito tem que jogar o jogo dele … não posso trancar a porta do quarto”. Cumpre salientar que é no quarto que M. se sente segura, “assegurada”, daí a sua dificuldade de se desvencilhar deste jogo, que não é somente de D., mas que também é seu jogo do inconsciente.
Assim como Medusa, fazendo uso do olhar, M. ofusca, fascina e deslumbra D. e a si própria, na medida em que este espetáculo produzido por M. “embaça” sua visão, não lhe permite ver o teatro privado da qual é protagonista, pois, o olhar petrifica-lhe na ignorância do que há por trás da cena da qual é diretora e atriz principal, ou seja, ela encontra-se alheia ao que está para além da aparência, do mostrado, do atuado. No momento de crise no qual encontra-se tonta, caída no chão e tremendo, M. almeja encontrar o remédio “rivotril”, porém, “não consegui enxergar direito”.
Tendo em vista que “os remédios não estão resolvendo como antes”, M. busca o remédio do analista quando pergunta: “você tem um remédio para me dá? … quero parar de sentir medo”. Neste momento o analista acolhe a demanda de tratamento e pontua: “podemos construir um aqui”. Em outro atendimento no qual relata estar a mercê do jogo de D., ela inclui o analista no seu sintoma perguntando: “nós iremos jogar o jogo dele?… você choraria por mim ? … e agora quem poderá me defender, o chapolin colorado?”.
No final do atendimento seguinte M. indaga o analista: “para que serve a caixa de lenços? … vou fingir que estou chorando para poder levar um lenço desse para poder limpar a lente dos meu óculos”. M. aponta para algo do analista que possa limpar a sua visão.
Portanto, o que M. pretende limpar, desembaçar é a visão do episódio anterior ocorrido na constituição do sujeito, na qual vê o Dragon Ball Z. Para tanto, M. indica uma mudança de posição e responsabilização no que diz respeito ao seu sofrimento, ou seja, se retifica de alguma forma quando diz sobre as crises: “sei que é coisa minha … será que isso vai passar, será que se eu sair da casa dele e arrumar trabalho vai mudar ou vai mudar e depois vai voltar? ”.
Continua no próximo episódio de Dragon Ball Z.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. (1940[1922]). A cabeça da Medusa. In: _______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 289-290. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
______________. (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: _______. Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67-143. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).
QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[i]Acadêmica do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[ii]Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.