Fernando José Ferreira da Silva[i]
Fernando Dório[ii] 

 

RESUMO
O presente artigo relata as experiências adquiridas durante o estágio curricular, na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, apresentando algumas reflexões teóricas acerca da abordagem Fenomenológica-existencial aplicada em psicoterapia, articuladas com um caso clínico. 

Palavras-chave: Liberdade. Angústia. Responsabilidade. Autenticidade. Auto-conhecimento.  

 

O importante não é o que fazem de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo.”
Jean Paul Sartre  

 

A questão da liberdade é um dos temas mais fascinantes e também mais delicados com que trabalhamos neste período de formação acadêmica e de estágios curriculares. Ela está intimamente relacionada com as relações interpessoais e a queixa de que a liberdade do cliente está sendo cerceada pela interferência do outro o que se percebe ser muito comum em psicoterapia.  

Ao fazer uso de sua liberdade, o homem é forçado a fazer suas próprias escolhas. A partir do momento em que uma escolha é feita, as outras possibilidades relacionadas com o objeto de sua escolha deverão ser descartadas. Diante da impossibilidade de optar por todas as alternativas simultaneamente e o fato de ter que renunciar a algumas delas, resulta no homem um sentimento de perda, que poderá desencadear no sentimento de angústia.  

Segundo Strathern (1999) Kierkegaard,  o primeiro a utilizar o termo existencialismo, afirmava que o homem é livre para todas as possibilidades, inclusive criar algo do nada e contribuir para a própria realização. Mas também é livre para negar esta realização. Ou seja, o homem também é livre para o não-ser. É através de suas escolhas que o homem exerce a sua liberdade e mesmo quando decide por nada escolher, ele já está escolhendo.

De acordo com Feijoo (2000) a liberdade é a situação da qual o homem não pode escapar e se constitui na condição de escolha do homem ante ao leque de possibilidades que se  apresentam. O sentido da vida do homem não lhe é dado por Deus, assim gratuitamente, nem lhe é imposto por determinismos naturais, mas é construído a partir de cada ação humana no decorrer de sua existência. Logo, como a vida não tem um sentido já dado, é o homem na sua ação que produz o sentido de seu viver e de seu morrer. (FEIJOO, 2000, p. 66). 

Diante de tantas possibilidades de escolha, das incertezas e da falta de sentido, haverá em cada escolha sempre um grande risco de errar.  Mas o homem tem que se abrir às suas possibilidades e seguir em frente. Mesmo diante da insegurança e da dúvida do que lhe aguarda no futuro,  ele não deverá recuar nem estacionar. Tal abertura do homem perante o futuro, que ele mesmo constrói através de suas escolhas irá promover a angústia, o sentimento indicador do dilema humano de se desejar seguir em frente, mas ao mesmo tempo temer-se ao incerto e ao desconhecido.  Segundo Feijoo (2000) a responsabilidade emerge, então, como condição da liberdade de escolha, pois cada um colherá exatamente o fruto do que plantar, ou seja, as conseqüências de seus atos e atitudes.  

Durante o último estágio, obteve-se a oportunidade de trabalhar com uma adolescente, a qual chamaremos de C, para preservar o seu anonimato. C que contava vinte anos de idade quando iniciamos seu atendimento, fora encaminhada pelo Conselho Tutelar para tratamento de toxicomania aos dezesseis anos, sendo que à época, ela não apresentava mais esta queixa como tema central. 

Conforme registros em seu prontuário, C. já havia sido atendida em outras instituições e quando chegou à Clínica, apresentava um quadro de dependência química cruzada (álcool, tabaco, cocaína, maconha). Aos poucos C. suspendeu o uso das drogas ilícitas, passando a consumir regularmente só o tabaco e eventualmente (aos fins de semana) o álcool.

C relatou que durante o tempo em que esteve internada em um centro de recuperação para dependentes químicos, vivenciou experiências homossexuais com outras internas. Ela afirmou que posteriormente experimentou também relacionamentos com parceiros do sexo oposto, chegando quase a ficar noiva de um rapaz que segundo ela, ainda lhe traz muitas lembranças. Afirmou ainda que seu coração ainda disparava quando via alguém parecido com o antigo namorado na rua e que se ele ainda a aceitasse, ele seria o único homem no mundo com quem ela se casaria.  

Todavia, C. alega ter se apaixonado por outra menina, que aqui chamaremos N, por motivos éticos. Elas,  então,  começaram a namorar e resultou que N foi morar com C, na casa de sua mãe, em imóvel compartilhado com o restante da família. 

Nesse aspecto de sua vida C agiu com segurança e autonomia, assumindo sua opção sexual e sustentando sua escolha diante o olhar do outro que sempre a incomodou e censurou.  De acordo com Santos et al (2000) 

(…) o homem é autoconsciente e capaz de transformar sua natureza, questionando seus motivos e interesses, bem como suas escolhas e condutas, podendo mudar sua condição, como por exemplo, passar da heterossexualidade para o homossexualismo, porque o homem se define por suas possibilidades de escolhas, quer dizer, tudo que configura a sua realidade. (SANTOS ET AL, 2000, p. 340)  

Durante o início dos atendimentos C. demorou-se em relatos sobre uma obra que estariam fazendo, construindo um pequeno apartamento em cima da casa de sua mãe. Ela nomeava as dificuldades encontradas na consecução de sua obra como as principais responsáveis pela sua angústia e seus problemas, uma vez que estava ansiosa para terminar a obra e mudarem-se para o andar de cima, onde ela e a parceira poderiam ter mais liberdade, mas que dificuldades de ordem financeira estariam adiando muito este momento. 

A princípio, julgamos que C. se detinha nestes relatos em um discurso periférico, evitando falar de seus sentimentos e das questões que verdadeiramente a estavam incomodando. Posteriormente, em supervisão, discutiu-se a possibilidade de se ler as entrelinhas  de sua fala, onde pode-se perceber a dimensão da espacialidade como uma dimensão valiosa da existência humana. 

Monique Augras, em O Ser da compreensão (1971) enfatiza a relevância do espaço físico por onde o ser se movimenta, como uma extensão de seu próprio corpo, onde ele poderá expressar a sua subjetividade. 

Poder-se-ia dizer então que o espaço é o corpo do homem, não sendo limitado às suas fronteiras somáticas, mas incluindo as extensões implícitas. Seria aquilo que Minkowski chama de espaço primitivo. (…) A vivência do espaço se expressa deste modo através da fenomenologia da corporeidade vivida, na sua presença e movimentação. Nesse ponto, o espaço primitivo é a morada do homem e como tal, o seu significado pode ser aproximado a partir da análise da casa, espaço criado pelo homem para assegura a sua proteção. (AUGRAS, 1971, p. 41)

Assim, mais do que a aceitação da família em acolher sua companheira para coabitar no mesmo imóvel, era muito importante para C. que elas tivessem um cantinho só delas, independente da casa da mãe,  onde pudessem vivenciar com autonomia as suas mais íntimas experiências, como todo casal. 

Ocorre, que segundo C, nos últimos dois anos o relacionamento das duas vinha se desgastando muito devido aos ciúmes da parceira, ao ponto de ocorrerem constantes brigas e discussões, passando pela agressão física. Desde então, de acordo com C, ela tentou por várias vezes romper o relacionamento, não obtendo sucesso.  

Um dos motivos alegados por C para a sua dificuldade em romper com N foi  o capital que esta ultima  investiu na construção da obra na casa de sua mãe,  ao qual estaria agora exigindo ressarcimento para seguir seu caminho e restituir a liberdade de C. Leia-se como liberdade, a própria condição de ir e vir do ser humano, que segundo C,  lhe era negada devido aos ciúmes doentios de N. 

Segundo Sartre (Giles, 1997) o homem está condenado a ser livre, a fazer suas escolhas e se responsabilizar por elas na construção de sua liberdade e da obra de sua vida. Assim, mesmo quando o homem decide não escolher, já está escolhendo. Todavia, a liberdade do homem está condicionada a sua capacidade de agir:    

A liberdade, sendo essencialmente projeto, isto é, tarefa, projeto de liberdade, ela se descobre no próprio ato. A consciência sartriana, em vez de ser, já que não tem essência, deve se fazer, se criar, e uma vez que ela é espontaneidade pura, ela é invenção constante.(…) O fazer é em si tão importante como o ser. Ter, fazer e ser são as categorias básicas da realidade humana. (…) Ser é agir. (GILES, 1997,  p. 293)

Durante o tempo em que trabalhamos com C, foi possível perceber a sua dificuldade em se implicar e a se responsabilizar com a construção de seu próprio destino, buscando sempre a afiliação ou a associação com terceiros para empreender os seus projetos, imputando sempre a eles a culpa pelo seu fracasso.  

Apesar de afirmar durante os atendimentos que queria retornar aos estudos para conseguir arranjar um emprego e retomar a direção de sua vida, quando esse emprego se apresentou C não o assumiu, retornando para casa, da porta da empresa, onde já se encontrava uniformizada, pronta para começar a trabalhar.  No mesmo dia à tarde, recebeu um telefonema da empresa lhe propondo uma nova oportunidade. No dia seguinte ela repetiu a cena,  perdendo  a vaga. Posteriormente C. afirmou que não teve coragem para entrar na empresa e assumir o seu cargo. 

Em um dos atendimentos, C afirmou que sempre que as pessoas ou as instituições facilitaram demais a sua vida, concedendo-lhe oportunidades extras ou sendo complacentes com a sua falta de interesse, assiduidade ou comprometimento com os projetos com quais se envolvia, ela não lhes dava maior importância, acabando por abandoná-los. 

O prontuário de C, quando registra suas ausências aos atendimentos em sua trajetória na Clínica, retrata esta realidade. Mais uma vez C. não compareceu a diversos atendimentos sem qualquer justificativa, que segundo as normas institucionais, caracterizou a sua desistência do processo. Através de um último contato por telefone, C. afirmou estar em outro município, o que nos deixou otimistas, pois este fato pode representar um primeiro passo em um movimento seu em direção à liberdade, tão falada nestes últimos meses.

 

REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1978 – 95p. 

FEIJOO, Ana Maria Lopes Calvo de. A Angústia: das reflexões de Kierkegaard e Heidegger à Psicoterapia In: ______ Angústia e psicoterapia. Angerami, Valdemar Augusto (org.)  São Paulo: Casa dó Psicólogo, 2000.  

GILES, Thomas Ranson. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989 

SANTOS, ET AL. A homossexualidade como modo de existência. In: ______ Fenomenologia e análise do existir.  Josgrilberg ET AL. (Organizadores) São Paulo. Editora  Metodista Digital. 2000.  

SARTRE, Jean Paul. O Ser o e nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes,1997.

STRATHERN, Paul. Kierkegaard em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 

________________. Sartre em 90 minutos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.


[i]Acadêmico do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva 

[ii]Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

E2-17 LIBERDADE: A coragem de ser e não-ser