Fabio Fernandes Teixeira[i]
Raquel Neto[ii] 

RESUMO
Este artigo tem como objetivo abordar, dentro de uma perspectiva fenomenológico-existencial, questões presentes no atendimento à família de Carla[iii], que foi representada nas sessões pela sua mãe Mônica[iv], de 55 anos. As temáticas principais levantadas na vivência de Mônica se relacionam com a angústia, desconhecimento das próprias possibilidades, experiência de não liberdade e culpa existencial. Durante o processo, Mônica realizou um movimento no sentido de se posicionar de forma mais autêntica, adquirindo maior conhecimento de suas possibilidades e aprendendo novas formas de se relacionar com a filha. 

Palavras-chave: Angústia. Liberdade. Culpa.

 

O atendimento de Mônica teve início em novembro de 2007 durante a implementação do estágio de Atendimento a grupos em situação de uso indevido de drogas na CAMT[v], em agosto desse mesmo ano, sendo que Carla já se encontrava em tratamento antes desse período. Os atendimentos decorreram com o objetivo de facilitar a elaboração das experiências de Mônica, através do reconhecimento dos sentidos constitutivos, presentes nas vivências relatadas por ela durante o processo terapêutico. No decorrer dos atendimentos, apareceram suas dificuldades no diálogo e aceitação sobre a orientação sexual de Carla, e uma relação de interdependência que aparece no processo familiar. 

Mônica, inicialmente, relatou seu sofrimento face ao comportamento de Carla no que se refere ao uso de drogas e álcool, que, mesmo estando em tratamento e em período de abstinência, trazia para a mãe o medo de uma recaída. “Tenho medo dela voltar a mexer com drogas, com bebida, essas coisas e que a Carla não tem a cabeça no lugar”. Mônica se responsabiliza em diversos momentos pela situação de Carla, contando das poucas oportunidades que teve na vida, trabalhando para se sustentar e cuidando dos filhos, mesmo assim diz sentir culpa em relação à forma que criou a filha, apontando para a atenção precária que dispensou à Carla em sua infância, pois tinha mais cuidado e era mais rígida com o irmão mais velho. Para Boss (1988, p.39), “todos os sentimentos de culpa baseiam-se neste ficar-a-dever. Ficar-a-dever que é, se os senhores quiserem, a culpabilidade existencial do ser humano”. Conforme elaboramos a relação do sentido de suas ações passadas e as escolhas de sua filha, Mônica progrediu tanto em perceber que Carla tem responsabilidade pelos seus próprios atos, como em elaborar qual o valor de suas ações na criação de sua filha. De acordo com Boss (1988, p. 31), “Só faremos justiça, tanto à angústia como à culpabilidade humanas, se deixarmos cada fenômeno de culpa concreto, seja ele como for, assim como ele se mostra de imediato, mas investigando com um cuidado ainda maior sua própria essência.”. 

Durante seus relatos, trouxe mais um elemento, a orientação sexual de Carla, situação que aparece para ela como um conflito difícil de lidar, pois não aceita esse relacionamento dentro de sua casa. Mônica marca assim, a importância do seu espaço vital, sua casa, seus valores e crenças e a dificuldade que ela possui em conviver com outras pessoas de possuem valores e formas de ser diferentes do que ela acredita como certo. No decorrer dos atendimentos, Mônica marcou seu posicionamento firme no sentido de não aceitar a presença diária da namorada de Carla, fato que culminou na saída de casa por parte da filha. Mônica marca sua posição diante dessa situação, amplia sua compreensão sobre a escolha da filha e desenvolve habilidades de se colocar em situações de enfrentamento.  

[…] enquanto ser-no-mundo, o Ser-aí já existe sempre junto às coisas. E como está sempre junto às coisas, está sempre com os outros. Não é primeiramente um ‘eu’ que deve posteriormente estabelecer relações com os demais Seres-aí e, sim, é originariamente um ser-com-o-outro. (GILES, 1975, p. 231). 

O diálogo é um aspecto da relação entre mãe e filha que aparece sempre como conflituoso no relato de Mônica. Sempre está envolvido em cobranças, discussões e brigas, e mostra da dificuldade que é para Mônica dizer não aos pedidos de Carla e de impor limites em suas ações. Conforme Mônica elabora melhor sobre o que ela quer e o que ela acredita, vem conseguindo pequenos progressos no sentido de permitir que Carla se responsabilize e que desenvolva autonomia na solução de seus problemas.  

No que tange os projetos de vida, Mônica diz não haver felicidade. Nesse ponto, aparece seu desgosto com o trabalho de faxineira que realiza, pois deseja trabalhar por conta própria, fazendo o que gosta. Para Angerami-Camon (1985, p. 42), “o sentido da vida para o adulto, na quase totalidade das vezes, é a realização profissional com que se empenha durante grande quantidade de tempo da existência”. Ao mesmo tempo, Mônica participa de outras atividades, como grupos de apoio a usuários de droga, onde afirma sentir-se muito bem em poder ouvir sobre as dificuldades e soluções de outras pessoas. Também vem desenvolvendo cursos e trabalhos com artesanato, assim como escreve poesias e diz de como se expressa através destas. Segundo Angerami-Camon, (1985, p.31), “A angústia de liberdade surge com a consciência precisa de que somos responsáveis pelos nossos próprios atos”. Cito um fragmento de poesia escrita por Mônica sobre um dos grupos que participou: 

Estou gostando muito, os vejo como minha família, aqui viemos hoje pra uma grande partilha. Partilha não só de alimentos, mas carinho, amizade, alegria, sofrimento tristeza e dor, partilham de muito amor. 

Mônica demonstra que, embora estejam presentes muitas dificuldades, sejam financeiras ou sociais, existem possibilidades que se abrem enquanto ela dirige suas ações em tarefas que produzem valores de criação. Segundo Frankl (1989, p. 83), “por muito limitadas que sejam as possibilidades de realizar valores, a realização de valores de atitudes continua a ser possível”.  

Uma existência, por muito empobrecida que pareça – na realidade, porém, só o será em valores criadores e vivenciais – pode oferecer ainda uma última oportunidade, a de realizar valores… tudo depende da atitude que o homem adote perante um destino imutável. (FRANKL, 1989, p. 83)  

Ainda de acordo com Frankl (1989, p. 103), existe mesmo uma tensão entre o que o homem é e o que ele deseja ser, uma tensão entre existência e essência, provocando, face à pressão das necessidades, a exigência e solicitação de um sentido que deve estar a frente do ser. Para Boss (1988, p. 43), no que se refere ao processo psicoterápico: 

Temos que nos contentar em remover do caminho, aqui e ali, uma pedrinha, um obstáculo, para que aquilo que já está aqui, e que sempre formou a essência do paciente, possa sair, por si, ao aberto, De sua reserva até agora mantida. (Boss, 1988, p. 43).

Como resultado do processo ainda em andamento, Mônica demonstrou desenvolver maior autonomia em suas decisões, demarcando melhor seu espaço pessoal na relação com a filha à medida que amplia sua rede de relacionamentos através de outras atividades, como trabalhos e cursos de artesanato, poesias e grupos de apoio que participa. Mônica se abre mais para momentos de diálogo com a filha e aprende como se posicionar e atribuir responsabilidades, demonstrando certa evolução do processo psicoterápico, no sentido de minimizar a dependência que existe entre as duas.

REFERÊNCIAS 

ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Psicoterapia existencial. São Paulo: Pioneira, 1985. 104p.

BOSS, Medard. Angústia, culpa e libertação. 4a ed. São Paulo: Duas Cidades, 1988. 77p. 

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo. A escuta e a fala em psicoterapia. São Paulo: Vetor, 2000. 193p.  

FRANKL, V. Psicoterapia e sentido da vida. 3ª ed. (A. M. Castro, Trad.). São Paulo: Quadrante, 1989. 352p. 

GILES, Thomas Ransom. História do Existencialismo e da Fenomenologia. Vol.1. São Paulo: EPU, 1975. 328p.


[i]Acadêmica  do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

[ii]Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

[iii] Nome fictício para preservar a identidade da cliente.

[iv] Nome fictício para preservar a identidade da mãe da cliente.

[v] Clínica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e ao Tratamento da Toxicomania.

E2-15 A angústia e a culpa na relação familiar