Bruno Batista Lourenço[i]
Raquel Neto[ii]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo fazer um breve relato dos atendimentos clínicos no período de 2009 do paciente L., usando como enfoque do trabalho os temas tempo e angústia. A experiência do tempo é uma realidade primeira, através da qual o homem se percebe. A situação do homem é essencialmente ambígua. Ser-no-mundo significa existir para si e para o mundo, incluindo o mundo social em que o ser com os outros assegura a realidade no modo de sua coexistência.
Palavras-chave: Angústia. Tempo. Existencialismo. Ser-no-mundo.
“Eu não sou Ninguém! E tu, quem és? Tu és Ninguém Também? Então formamos um par? Mas… cuidado! Não fales, porque se souberem… Que estrago! Como é chato ser Alguém! Ser tão famoso como um Sapo. Que passa o mês de junho todo a coaxar seu próprio nome. Diante de um embasbacado Charco”
DICKINSON (1999, p. 47).
No Mito da Caverna, do livro VII da República, Platão narra a alegoria da teoria do conhecimento e da paidéia. Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres e animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna, e no primeiro instante fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais.
Comparando o Mito da Caverna de Platão com a abordagem de Heidegger, chega-se à compreensão de que o sentido de ser do homem se desvela em sua íntima relação com o tempo, através da reflexão de sua existência com a totalidade. Segundo Augras (1993), tempo é a estrutura fundamental do existir humano, pois não há mundo sem pessoa, nem pessoa sem mundo e nem tempo sem existência. O tempo é a extensão e criação da realidade humana, é paradoxalmente condição de sua existência e garantia de sua impermanência. Recusar o tempo é a própria tentativa de recusar a condição humana em si mesmo, é recusar nossos limites, é a tentativa de negação da morte. O homem cria o tempo, mas não o determina. Falar do tempo é descrever toda a insegurança ontológica do homem que percebe-se temporal, marcado por uma finitude, onde é lançado no mundo carregando em si a marca da angústia.
A partir daí pode-se relatar o caso do cliente L. com as noções apresentadas acima. L. tem 14 anos e chega à psicoterapia por vontade própria, acompanhado dos pais. Se mostra um adolescente tímido, assustado, de postura curvada e andar desajeitado. Em sua fala nota-se sofrimento por ser diferente, estereotipado como “nerd” e por ter dificuldades de criar vínculos e amizade com o resto dos adolescentes. L. diz se achar feio e tímido, não gosta de conversar, pois várias vezes é criticado. Tem alguns amigos, mas mantém um relacionamento distante e sem intimidade. Passa basicamente os finais de semana em casa vendo televisão, jogando computador ou estudando. L. é um bom aluno e tira boas notas na escola, porem atribui sua dedicação escolar a uma vontade de passar logo por tudo e não ter mais que ir à escola e nem suportar as críticas de seus colegas de sala.
Como no Mito das Cavernas, L. está aprisionado, se vê sem possibilidades, angustiado e impotente. Está preso em um tempo mítico e delimitado pelas críticas e julgamento dos outros. Não se lança, não explora suas possibilidades. Está congelado em si mesmo, e sua única solução é “apressar” o tempo para tentar fugir desse outro que representa sua morte. L. está mal situado no tempo, pois o tempo nasce da relação com as coisas. L. vive o dilema entre angústia e existência, se vê frente a sua condição de ter sido “lançado” no mundo e de estar ante suas possibilidades. Busca “encontrar-se aí”, o que não diz respeito a uma localização espacial, mas à facticidade da existência de um mundo onde o significado de suas tramas constitui como uma história frente a outras histórias, como uma existência que busca ser concreta.
A situação do ser no mundo é marcada pela estranheza e pela angústia. Nesse sentido, Augras (1993) define que a compreensão do outro não descansa apenas na compreensão de si, mas se justifica a partir da situação do homem como desconhecido de si mesmo. Ou seja, a coexistência é também co-estranheza. O outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, ele também revela que a imagem de si comporta uma parte de alteridade.
L. sente-se um estranho no mundo, onde tem a percepção de que sua existência esta sempre em jogo, pois é atormentado pela imagem fictícia que faz de si. Imagem que aparece como angústia e que em nada se sustenta. Essa angústia é apenas uma situação, além da qual nada há, além do fato de estarmos “aí”, frente ao desconhecido, à precariedade, ao estado de desamparo.
No decorrer dos atendimentos terapêuticos com L., ele começa a caminhar em direção a si mesmo, transformando sua vivência e convivendo com a angústia e com o desconhecido. L. passa a ser mais autêntico consigo mesmo, associando suas experiências a um sentimento, colocando-se frente ao mundo e aceitando sua angústia enquanto experiência da condição humana. Assim, aceitar o tempo residiria no fato de percebermos a polaridade de forças como uma condição no sentido que ambas as direções são inerentes a existência. O dilema de tais forças é justamente aquilo que da “um sabor de humanidade” as nossas experiências de cada dia.
REFERENCIAS
ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Existencialismo e psicoterapia. São Paulo: Traço, 1984.
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagóstico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
BOSS, Medard. Angústia, culpa e libertação : (ensaios de psicanálise existencial). 4. ed. São Paulo: Duas cidades, 1988
DICKINSON, Emily. Fifty poems (cinqüenta poemas). Rio de Janeiro, Imago/Alumni, 1999, pág. 47.
RÉE, Jonathan. Heidegger : história e verdade em ser e tempo. São Paulo: UMESP, 1999.
[i] Acadêmico do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
[ii] Professora supervisora de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva