“A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida”.
Vinícius de Moraes
Vanessa Gomes de Lima[i]
“Já dizia o “grande” poeta Vinícius de Moraes que o sentido da vida está nos encontros que são constituídos no percurso do viver, ainda que, muitas vezes, este encontro de si e com o outro seja permeado pelos desencontros. Da afirmação do poeta, uma questão pode ser suscitada: o que seria esta “arte do encontro”?
Antes de prosseguir com o desenvolvimento dessa questão, as pretensões deste texto serão esclarecidas na tentativa de possibilitar um entendimento do caminho percorrido até o presente ponto. Assim, o texto será descrito em dois momentos. No primeiro, a arte do encontro será tratada a partir do sentido extraído da língua portuguesa e do cotidiano das pessoas. Num outro momento, será desenvolvida a partir dos referenciais teóricos da psicoterapia existencial fenomenológica.
Entretanto, outro ponto deve ser esclarecido, os encontros e desencontros neste texto correspondem à experiência obtida nos atendimentos com adolescentes na clínica de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva no estágio Psicoterapia Existencial Fenomenológica.
No ano de 2007, iniciei os atendimentos a três adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos. Eram adolescentes típicos da atualidade, com diagnóstico de déficit de atenção, de aprendizado e agressividade, indicados por terceiros (família, escola e médico) e sem qualquer implicação inicial dos jovens no processo. Literalmente foram convocados a frequentar uma psicoterapia por não se enquadrarem em um padrão de normalidade esperado. Isso significa que, de algum modo, estavam além ou aquém do modelo estabelecido no desempenho de papéis sociais como filhos, alunos, cidadãos etc.
Contudo, apesar das descrições iniciais, o que de fato surpreendeu-me foram as características apresentadas por esses jovens nos primeiros contatos. Encontrava-me diante de indivíduos envelhecidos e embotados afetivamente. De poucas palavras e gestualidades empobrecidas. Com precárias demonstrações de seus sentimentos e principalmente com raros relacionamentos intersubjetivos. O computador era a via de comunicação e de relacionamento mais utilizada e nem sempre servia para que pudessem se comunicar com as pessoas, já que, muitas vezes, preferiam um jogo. A ociosidade e a saturação do cotidiano eram relatadas de maneira metódica: “vou à escola, chego da escola, almoço, vejo televisão, faço dever, fico no computador e depois vou dormir”. […] “Todo dia é a mesma coisa” (sic.). Estavam vazios: de sentido para a vida, de projetos que sustentassem a existência e principalmente de encontros significativos.
Porém, à medida que nos encontrávamos, gradativamente, o cenário opaco era quebrado com alguma história contada por alguém. Nos relatos, ora risos ora tristezas. Aos poucos, os sentimentos começaram a ganhar lugar no processo. Algumas vezes a indignação com algum familiar tomava o grupo, em outras a angústia das provas, a ansiedade dos encontros amorosos, o momento de pensar nos projetos futuros, enfim o grupo passou a ser “um lugar” no qual era possível falar e sentir sem restrições. O ponto que gostaria de demarcar neste momento é que o setting passou a ser, principalmente, o lugar do encontro: de si e com o outro. Ao observarem e escutarem as vivências de outrem foi possível individualmente e coletivamente se perceberem, se diferenciarem, se identificarem e apreciarem o contato coletivo.
A partir desse contato, foi possível trilhar um caminho, no qual o vazio existencial cedeu lugar a um sentido para a vida pela via do encontro. Segundo Augras (1978, p. 55), “o mundo humano é essencialmente mundo da coexistência. O homem define-se como ser social e o crescimento individual depende, em todos os aspectos, do encontro com os demais”.
[…] O conhecimento do outro, pois, supõe a compreensão da existência como ser da coexistência. A relação ontológica com o outro torna-se então uma projeção dentro do outro da relação ontológica de si para si. O outro é um duplo de si. A compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência, e ao mesmo tempo constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro. (AUGRAS, 1978, p. 55-56).
Para retomar a questão inicial do texto: o que seria esta “arte do encontro”,o significado das palavras em evidência foram extraídas do dicionário da língua portuguesa. Assim, para HOUAISS (2004), arte, encontro e desencontro são:
Arte: habilidade humana de pôr em prática uma idéia, pelo domínio da matéria; O uso dessa habilidade nos campos do pensamento e do conhecimento humano e/ou da experiência prática.
Encontro: reunião combinada ou casual; em busca de, em favor de; ficar frente a frente com (algo que procurava ou não); achar; passar a conhecer ou ter a consciência de; descobrir; ir de encontro a; ir ao encontro de (alguém); estar equilibrado, satisfeito consigo mesmo.
Desencontro: divergência (de idéias, sentimentos, etc); Perder-se, ser oposto, incompatível; divergir.
Encontrar, portanto pode ser pensado como uma habilidade humana de pôr em prática uma idéia, de empregar esta habilidade nos campos do pensamento, conhecimento e experiência prática. O encontro, como uma reunião combinada, enquanto ir em busca de algo ou alguém, equilibra e traz satisfação. Tem o caráter do descobrir, de ter consciência de coisas novas. Encontrar sugere um movimento que possibilita ir ao encontro. Esses encontros podem acontecer nas mais variadas formas. Pode ser um encontro amigável, encontro amoroso, encontro sexual, encontro familiar etc. Em geral, acontece entre duas pessoas, mas também acontece entre mais que dois. “Pode ser em qualquer ambiente desde que os envolvidos estejam dispostos a experimentar as sensações do seu próprio ser que aparece como uma resposta para si mesmo ou uma resposta para o outro; ou para as pessoas com as quais se está interagindo naquele momento”, conforme descrito por (CARRENTO, 2005).
Porém nem só de encontros se vive. Os desencontros também fazem parte do processo do viver, e quando, em desencontro, o ser humano, ao invés de se achar se perde, diverge em idéias e sentimentos. É tomado pela incompatibilidade. Nesse sentido, incapaz, nesse momento, de se harmonizar.
Quando os ambientes que deveriam possibilitar os encontros no dia- a- dia, como o ambiente de trabalho, a igreja, a escola, a vida familiar etc, não estão suficientes para proporcionar ao indivíduo relações próximas e verdadeiras, com manifestações espontâneas de sentimentos, emoções, sem censura e domínio, é no encontro psicoterápico que esta possibilidade se consolida.
O encontro é a confluência da harmonia e da reciprocidade; é um sentimento de estar dentro da vida de alguém, sem nos esquecermos de nossa própria identidade e individualidade. O encontro consiste numa experiência interna decisiva, na qual se revelam novas dimensões do eu (não como conhecimento intelectual, mas como consciência integral) e se descobre valores mais amplos e abrangentes. (MOUTAKAS citado por CARRENTO, 2005).
“A psicoterapia, seja qual for a teoria em que se apóia, consiste precisamente em reaprender a lidar com os demais, mediante a interação com o Outro, sintetizado na pessoa do terapeuta, ou desdobrado nos outros, no caso da terapia de grupo” (AUGRAS, 1978, p. 55).
Segundo Erthal (1989, p. 95), a tarefa do psicoterapeuta na terapia vivencial é ser-com-o outro. Desse modo, o terapeuta vai ao e de encontro ao cliente, numa troca, que inicialmente serve como modelo para o cliente e, posteriormente, o impulsiona a romper com suas estruturas cristalizadas. Arriscando na relação junto ao terapeuta, o cliente permite generalizar esta situação para outras formas de relação interpessoal. “[…] É neste estar-junto-a que a pessoa se sente capaz de crescer como quer existir, fazendo com que se volte mais para si mesma, transformando suas percepções simples do mundo em conscientizações autênticas do mesmo” (ERTHAL, 1989, p. 95).
Nos encontros finais, ao retornarem das férias, os adolescentes se depararam com a probabilidade de continuarem a psicoterapia, porém, a partir de novas circunstâncias (horário, dia e número de pessoas). Diante da situação, foram unânimes ao questionarem se o grupo iria permanecer no processo. Da questão, uma afirmativa pôde ser pensada: que o encontro, neste caso, do grupo e com o grupo, trouxe um sentido para cada um e esse pode ser ilustrado pelos dizeres do poeta Vinícius quando afirma que: “A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida”.
Embora o desencontro final tenha ocasionado o término do grupo, espero, sinceramente, que o encontro ocorrido na relação psicoterapêutica tenha recriado e permitido a esses jovens um encontro na vida.
REFERÊNCIAS
ARTE, ENCONTRO E DESENCONTRO. In: HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1978.
CARRENTO, Esther Gomes de Lima. Encontro. Disponível em:<http://www.encontroacp.psc.br/encontro.htm>. Acesso em: 15 maio 2008.
ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Terapia vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1989.
NOTA DE RODAPÉ
[i]Aluna do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Raquel Neto.