Quando eu escrevo com tinta a palavra “vinho”,
esta não tem o papel principal mas permite a fixação
durável da idéia de vinho. A tinta contribui assim para
nos assegurar o vinho em permanência. Escrever e
desenhar são idênticos no seu fundo.
Paul Klee[i]
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã.
Carlos Drummond Andrade
Geraldo Martins[ii]
O que podemos fazer de um fragmento clínico? Construir a clínica, na medida em que o lemos. Cada leitura o altera, o desloca do seu momento inaugural e, em compensação, nenhuma o reescreve, tão somente o escreve num sem-cessar infinito. O horizonte que desponta para nós é aquele em que leitura e escrita se entrecruzam com a fala na própria experiência. Nossa experiência é uma experiência de leitura, já que “o texto, escrito ou lido, é a cena onde vejo o real”, [iv] portanto o inconsciente é um escrito passível de leitura, logo o que escrevemos da clínica é aquilo não cessa de não se escrever.
O texto é um ato falho que oculta, como o sonho, o desconhecido. Tal qual o sintoma, um texto é uma obra enigmática a decifrar. As primeiras dificuldades de nossa tarefa não estão em não dispomos de técnicas, de eventos ou, ainda, devido à falta de observações. Devem-se, creio eu, ao fato de que os fenômenos mais comuns que escutamos – motivo da escrita da clínica – são aqueles que nos são muito familiares, aqueles que nos fornecem o enigma a ser resolvido. O óbvio ululante é complexo e carregado de mistérios,portanto o desconhecido – obscuro – está manifesto nos pequenos tropeços de linguagem, quando faz aparecer o furo do texto.
O texto é composto pelo encadeamento dos significantes, pelas lacunas entre eles e neles, revelando e velando o desconhecido. O que Freud diz dos atos falhos se aplica aos textos. Os nomes que aparecem para substituir a palavra esquecida, falhada, são tão injustificados quanto antes da explicação. Eles nos advertem tanto do que nós esquecemos como do que queríamos lembrar. Sendo assim, podemos concluir que nossa intenção de esquecer algo não foi totalmente bem sucedida, nem totalmente fracassada. Por tudo isso, o texto é um manifesto – sem comunicação – que não requer compreensão. Nossa referência é o literário:
E mais fácil compreender quando se olha o texto com a
língua dos pássaros, sons, ritmos, morfemas,
que ora são língua, ora são imagens, ora são este corpo que
escreve, ora são nada
diz-se, por vezes, palimpsesto,
mas não
Compreender um texto é como compreender um cão, uma
previsão do tempo,
ou seja,
é aceitar que não se fala,
que se não compreende, excepto pela companhia,
é não confiar no tempo que fará
vê-lo como prometido e como incerto
como nadas objectivos que poder ser o algo concreto a que
o meu corpo se liga[v]
Tudo isso vale para o escrito, já que esse não é aquele que gostaríamos de ter falado, nem tampouco aquele que gostaríamos de ter escrito: existe uma noite por trás do escrito. Não fomos totalmente bem sucedidos embora nem totalmente fracassados. Escrevemos. Outra coisa? Aliando-me à escritora, afirmo que o que eu te falo não é o que eu te falo e, sim, outra coisa. Só escrevemos.
O que escrevemos? Essa não é a questão do escrevente. [vi] Essa é uma questão para o leitor, logo de leitura.
Dessa feita, o texto só se dá em sua diferença. Ele é sempre versão. Per-versão. O prefixo per indica que há uma versão contínua, portanto versões sem texto original. As versões surgem como efeito do corte, da barra que separa o significante do significado. O texto é um enigma, na medida em que se liga a uma ruptura, a um recalque, a uma proibição: a mãe.
Um texto, como um sonho, um sintoma, nada comunica. Interpretá-los significa indicar seu sentido, substituí-lo por alguma coisa que se pode inserir na cadeia das ações psíquicas. Sendo assim, descobrir um texto não é encontrar por trás dele um outro texto, pois “Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminhos a outros”. [vii] A busca do sentido original, derradeiro, é da ordem da utopia. Ilusão do neurótico, que faz do texto um gozo de saber.
Façamos alguns desvios. Freud[viii], quando tratou da diferença do método psicanalítico e do método hipnótico pela sugestão, recorreu ao gênio da Renascença – Leonardo da Vinci – para sustentar a antítese: técnica sugestiva e técnica analítica. Para Da Vinci, havia uma antítese com relação às belas artes que ele resumiu na seguinte fórmula: per via di porre e per via di levare. A pintura, de acordo com o renascentista, operava per via di porre, uma vez que ela aplica partículas de cor onde nada existia antes na tela sem cor, enquanto a escultura operava per via di levare, na medida em que o escultor retira do bloco de pedra tudo o que ocultava a superfície da estátua nela contida.
Com a fórmula do pintor da Gioconda, Freud aproximou a técnica psicanalítica do fragmento per via di levare. O trabalho do analista seria semelhante ao do escultor.[ix] Se transpomos a antítese de Da Vinci para a operação da escrita, somos tentados a retificar a idéia que, em geral, o senso comum professa: a da existência da tela em branco do computador, ou ainda, a antiga folha branca – vazia – como causa da angústia ante ao ato de escrever. Os brancos da tela ou da folha não estão lá no nada da sua brancura, ao contrário, lá encontramos os traços, as manchas apagadas como pegadas deixadas pelo Outro. Escrevemos nos sulcos brancos, naquilo que repetimos desde sempre: O Outro. É a partir destas primeiras inscrições que esculpimos o texto. Sou mais tentado a pensar o trabalho do escrevente como uma operação per via di lavere.
A metáfora do escultor reaparece em Freud por meio de suas concepções acerca do trabalho da ciência. [x] Para o psicanalista, a análise, como a ciência, caminha a passos lentos. Embora façamos conjecturas, formulemos hipóteses, as quais abandonamos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência e vivacidade durante a condução de um tratamento psicanalítico. Tudo isso pode ser pensado em relação ao trabalho da escrita. Escrever, reescrever, abandonar partes escritas e hipóteses, revisar, ler o discurso do sujeito é a tarefa fundamental de uma análise.
Escrever nos sulcos da angústia, em desespero, sem musa e sem inspiração:
Escrever apesar do desespero. Não: com desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o nome disso. Escrever ao lado daquilo que precede o escrito é sempre estragá-lo. E é preciso no entanto aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um outro possível deste mesmo livro.[xi]
O cientista e o escrevente trabalham como o escultor no seu modelo de argila, o qual, de maneira insistente, transforma o esboço primitivo, remove, acrescenta, até chegar àquilo que sente ser um satisfatório grau de semelhança com o objeto que vê ou imagina. Laboriosa, resistente, é a construção do texto, que não é o texto ouvido, mas sim outro texto, que embora nasça de algo falado é regido por outra lógica.
Tudo isso nos remete ao que Lacan desenvolveu com o tema da poubellication[xii], o qual encerra uma doutrina da obra. Ele defende que a publicação deriva da lixeira e sustenta, também, que o publicado deriva do dejeto. Como só existe obra publicada, logo toda obra, como tal, deriva do dejeto. O dejeto é o outro nome do objeto a: causa do desejo. A obra (publicação) é causada pelo dejeto (lixeira), é o dejeto elevado à dignidade de escrito, quer dizer, de obra. É a queda do objeto, que introduz uma abertura, tecida, margeada pelo escrito. O objeto a, equivalente a queda, funciona em relação à perda, conseqüentemente seu outro nome é abertura.
Desta feita, o verbo é modelo de criação a partir do nada. É da falta que o verbo escreve e a sua obra – texto em fragmento – é a repetição indefinida dessa falta. A psicanálise é sempre textual. Ela é do texto, sobre o texto, com texto, enfim: resistência do texto. Nada mais é do que eterno jorro de linguagem, que não cessa de falar, portanto o que não cessa de não se escrever. A ciranda da linguagem constrói-se em torno do vazio, colonizando, assim, a coisa freudiana. Cada realidade se inaugura e se define com um discurso, que nada mais é do que aquilo que produz o laço social: articulação do desejo ao significante.
As mãos do escultor ferem a pedra, dando-lhe uma imagem. O ouvido do analista faz escanção à cadeia significante. O escrevente risca a folha, rascunha, apaga, rasura o significante, deixando o traçado. Sem a perfeição idealizada, sem chegar ao que queria escrever, ele coloca um ponto no texto e desvela a topografia das palavras.
Escrever é arriscado. É nervurar o verbo que não é revelação e tão pouco inspiração. Escrever arde quando há suspensão da significação. Os textos dobram e desdobram sobre as folhas, escrevendo mais do que se é possível ler. São muitos os riscos que prendem o homem ao rochedo da castração, que, sem o fogo iluminado da esperança, prometeica, sem a certeza cartesiana, sem um Deus que lhe dê o paraíso celestial, resta-lhe, tão somente, ser arriscado diante do seu texto.
Na realidade, todos os acontecimentos importantes estão na grafia. Ela guarda, acumula e dilapida a vida. O paramento do corpo é tecido pela nervura do verbo. “[…] bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abre a geografia dos mundos.” [xiii]
O tempo das idéias claras e distintas esvaneceu, a consistência do Outro diluiu, não somos mais o centro da gravitação, as viagens utópicas naufragaram no oceano da razão cínica. O acaso nos leva para os caminhos do agrimensor K., personagem de O Castelo de Kafka[xiv], que, no escuro da noite, chega a uma aldeia coberta de neve e encontra um albergue perto de uma ponte. Tudo tem uma cor sombria, desde o ambiente até a recepção dos seus habitantes.
Terminada a longa noite, foi possível ao herói kafkiano mirar – através do dia turvo – no pico da colina gelada, o castelo coroado pelo vôo de gralhas, dando à manhã cinza um tom sinistro. K. nunca conseguirá chegar até o prometido castelo, nem seus donos o permitirão. O agrimensor busca junto aos burocratas maliciosos o seu direito de chegar até lá. Um jogo de argumentações, de sofismas e de retóricas obsessivas acabam por criar um labirinto intransponível em que se entrincheira a dominação.
O romance inacabado de Kafka deixa-nos, como K., circulando em volta do castelo, numa busca inútil de uma entrada para as salas do castelo. O escritor de tramas tortuosos faz do Castelo desconhecido a metáfora do homem que, ao produzir conhecimento, produz, também, o seu próprio desconhecimento. Quantas salas do nosso castelo ficarão desconhecidas? A experiência clínica, para mim, nada mais é que admitir o desconhecido. Diante dele, não vejo outro destino a não ser o de escrever o verbo. São tempos de migrar para o norte da escrita.
[i] KLEE, Paul citado por LOPES, Silvina Rodrigues. Comunidades da excepcão. In: LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Lisboa: Relógio D’Água, 1999. p.109.
[ii] Psicanalista, professor do Centro Universitário Newton Paiva. Autor de O Perfume das Acácias, Belo Horizonte: Casa Cambuquira, 1997 e A Estética do Sedutor – uma introdução a Kierkegaard, Belo Horizonte: Mazza, 2000. Co-autor de A escrita do analista. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, Destinos da Sexualidade. São Paulo: Casa do psicólogo, 2004. A cultura vai ao Shopping. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. Endereço eletrônico: martinsgm@uol.com.br – Telefone: 0xx31-3225.1832.
[iii] KLEE, Paul citado por LOPES, Silvina Rodrigues. Comunidades da excepcão. In: LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Lisboa: Relógio D’Água, 1999. p.109.
[iv] LLANSOL, Maria Gabriela. Inquérito às quatro confidências – Diário III. Lisboa: Relógio D’Água, 1996. p.107.
[v] LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio D’Água. 1998. p.74.
[vi] Para uma discussão a respeito da noção de escrevente, ver MARTINS, Geraldo Majela. Fomos atingidos… com todas as letras. In: De Um Curso a um Discurso – Clínica e Contemporaneidade – XV Jornada de Trabalhos dos alunos do Curso de Formação de Psicólogo. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva, 1999. p.15-21.
[vii] LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. Lisboa: Relógio D’Água. 2a ed. 1998. p.55.
[viii]FREUD, Sigmund. Sobre a Psicoterapia (1905). In:____ Fragmentos da análise de um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 270 (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v.7).
[ix] Os futuros trabalhos de Freud, sobretudo a partir da torsão de 1920, com além do princípio do prazer, construções em análise mudam essa posição da análise per via di levare. Para tanto, remeto o leitor a SALIBA, Ana Maria Portugal Maia. Para escrever o infinito… In: Alétheia. Publicação do Inconsciente. Centro de Estudos Freudiano, Governador Valadares, n.2, p.21-26, mar.1998.
[x] FREUD, Sigmund. Conferência XXXV – A questão de uma Weltanschauung. In:_____ Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1933[1932]). Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 211 (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v.21).
[xi] DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.27.
[xii] Amálgama de poubelle (“lixeira”) e publication (“publicação”).
[xiii] LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio D’Água. 1998. p.147.
[xiv] KAFKA, Franz. O Castelo. [trad. Modesto Carone]. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 482p.