Flaviane da Costa Oliveira [i]
INTRODUÇÃO
A contemporaneidade anuncia desafios e possibilidades à atuação da Psicologia, convocando os profissionais a ocuparem novos espaços. Nesse sentido, discuti-se o papel da psicologia e, em especial, da psicanálise, que, com o passar do tempo, disseminou-se por diversos contextos, inaugurando a chamada psicanálise aplicada.
Foram analisados os limites de atuação do psicólogo nas instituições frente às vicissitudes da clínica das psicoses e à necessidade do diagnóstico estrutural, tendo como protótipo o setor de psicologia da Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher (DECCM). Utilizou-se a metodologia qualitativa, construindo um estudo de caso, a partir de um atendimento ocorrido na DECCM.
1.O DIAGNÓSTICO ESTRUTURAL E A CLÍNICA DAS PSICOSES
No final da Primeira Guerra Mundial, em seu texto Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1976), Freud anuncia o futuro da clínica por ele pensada. Segundo Laia (2008), “trata-se de – sem dispensar os conceitos fundamentais – ‘adaptar nossa técnica’ às ‘novas condições’ que a psicanálise é, com o final da Grande Guerra, convocada a enfrentar”. Assim, a psicanálise foi aproximando-se de novos contextos, formando o que chamamos hoje de Psicanálise Aplicada, que preocupava-se, em especial, com o sintoma e seu destino.
Pensando no contexto da DECCM, Couto (2005) propõe uma forma de intervenção denominada Intervenção Retificadora. Essa possui quatro momentos: a queixa, a demanda, a intervenção retificadora (propriamente dita) e o enigma, sendo o objetivo final desta intervenção provocar um enigma que leve o cliente a pleitear a continuidade de seu processo analítico. Neste trabalho, apontamos o dispositivo do diagnóstico estrutural como suporte essencial para o atendimento frente às peculiaridades da clínica da psicose.
As estruturas psíquicas são pensadas por Lacan na primeira parte de sua obra, basicamente na década de 60, a partir da observação das diferentes posturas adotadas pelo sujeito frente aos registros simbólico, real e imaginário (FIGUEIREDO e MACHADO, 2008).
A passagem pelo complexo de Édipo é fundamental para o sujeito, pois a forma como esse lhe dá significado irá definir sua posição estrutural.
A referência ao Édipo reinstaura a clínica da estrutura do sujeito equivalente à estrutura da linguagem, na medida em que o Édipo é a armadura significante mínima que condiciona a entrada do sujeito no mundo simbólico (QUINET, 1990, p.12).
Segundo Quinet (1990), nas psicoses não desencadeadas, o outro é apreendido no registro imaginário. O psicótico usa “bengalas imaginárias” para se apoiar quando convocado a significar o que lhe falta. Quando o sujeito é convocado a situar-se no lugar do Outro, ou quando alguém vem a ocupar este lugar, o sujeito pode responder com um surto, isto é, com o desencadeamento psicótico, “(…) nesse sentido, a situação analítica, que é uma forma de tomar a palavra, pode ser o desencadeador de uma psicose” (QUINET, 1990, p.23).
A postura freudiana é a de indicar análise apenas para os casos de neurose, pois não é possível sustentar a promessa de cura frente à psicose (FREUD, 1969). Já Lacan faz uma ressalva quanto ao cuidado frente aos pré-psicóticos, mas afirma que o analista não deve recuar nos casos de psicose, podendo aceitá-los ou não em análise (QUINET, 1990).
Na psicose, o analista deve manobrar sua posição fazendo com que o sujeito deixe de posicionar-se como objeto de gozo do Outro, sua postura
Deve ser a de dizer não ao gozo do Outro, para que o significante possa advir (…), ou seja, que tomemos ao pé da letra o que este nos conta, o que não implica uma confissão de impotência. Trata-se de saber escutar aquilo que os psicóticos manifestam de sua relação com o significante (QUINET, 1990, p.88).
Trata-se de secretariar o alienado de maneira a testemunhar sua fala e promover um esvaziamento do Outro, de provocar a adição de um significante que barre o gozo do Outro (LACAN, 1988).
2. O SECRETÁRIO DO ALIENADO: PENSANDO A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO
Neste tópico, apresenta-se um caso clínico, derivado de um atendimento na DECCM, no qual se buscou discutir a posição do analista enquanto “secretário do alienado” (LACAN, 1988).
A paciente tem 41 anos, é casada há 22 anos e tem três filhos. Relatou que seu marido é muito ciumento e agressivo, e que ele a tem ameaçado de morte. Pedi-lhe que descrevesse as ameaças. Ela revelou que o marido a acusa de ser “safada” e de sair com outros homens, sendo que, se ela não for somente dele, não será de mais ninguém. Relata, também, que faz acompanhamento no CERSAM e usa remédios para depressão. Disse que já tentou suicídio, tomando vários remédios juntos, acabando no pronto socorro, onde lhe fizeram lavagem estomacal. Desde então, não se sente bem, “é como se tivesse algo em minha garganta” (sic). Pergunto-lhe o que a levou a tentar suicídio. Ela diz que era funcionária pública, tirou férias, comprou um carro, mas seu marido não a deixou dirigir, pois achava que ela iria se encontrar com outros homens. Então, foi à rodoviária, comprou uma passagem para uma cidade desconhecida e ficou lá por um tempo, dormindo na rua e pedindo esmolas; faltou muito ao trabalho e com isso o perdeu. Diz que o marido é agressivo, que brigou no trabalho e também perdeu o emprego. Diz que encontrou um remédio no bolso de sua calça, guardou-o e o marido ficou procurando. Quando contou ao marido que estava com o remédio, ele lhe disse que ela não deveria tomá-lo, pois poderia morrer. Relata que seu irmão matou três namoradas e ela tem medo de que o marido faça o mesmo, e, por isso, quer denunciá-lo. Explico-lhe que nosso setor tem o papel de apenas escutá-la, sendo um espaço aberto para que ela fale, sendo que a denúncia poderia ser feita em outro setor da delegacia.
A paciente do relato acima não retornou ao setor de psicologia da DECCM. Ainda assim, fica clara a postura adotada pelo analista. Ele atua para oferecer ao psicótico um lugar de escuta, proporcionar-lhe a fala sem pressuposto, pois sua demanda pode provir de uma significação que emergiu em sua vida ou de diversas significações sob as quais ele tende a sucumbir, ele pode querer fazer o analista testemunhar esta significação ou pode querer encontrar a significação derradeira, que finde com o significante sem-fim (QUINET, 1990). Nesse caso, a paciente não retornou, mas se assim o fosse, a conduta apropriada ao terapeuta é a posição de testemunha do paciente, buscando sustentar seu discurso a fim de esvaziar o Outro gozador.
Segundo Quinet (2002), o diagnóstico diferencial estrutural é determinante para a condução da análise. Tendo em vista o cenário de atendimento da DECCM, acredita-se que a postura adequada, nos primeiros atendimentos realizados, deva ser a de testemunha do discurso do outro, a fim de conceber um diagnóstico estrutural.
3. CONCLUSÕES
Se na maioria dos atendimentos realizados na delegacia de mulheres não há retorno dos pacientes, sendo esses atendidos uma única vez, resta ao analista uma posição de oferta da palavra, que não convoque o sujeito a posicionar-se frente ao seu sintoma. É preciso, portanto, pensar formas de utilização do diagnóstico estrutural como premissa deste processo. Por ora, fica uma certeza: “se o sujeito é psicótico, é importante que o analista o saiba, pois a condução da análise não poderá ter como referência o Nome-do-Pai e a castração” (QUINET, 2002, p.22).
REFERÊNCIAS
COUTO, S.M.A. Violência Doméstica: uma nova intervenção terapêutica. Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC, 2005. 120p.
FIGUEIREDO, A.C., MACHADO, O.M.R. O Diagnóstico em Psicanálise: do Fenômeno à Estrutura. Disponível em: <http://www.ebp.org.br/pdf/Ana_Cristina_Figueiredo_e_Ondina_Machado_Diagnostico_em_psicanalise.pdf> Acesso em: 25 mai 2008.
FREUD, Sigmund. Linhas de progresso na terapia analítica. In: ______, Edição das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVII, p. 199-211.
FREUD, Sigmund. O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, Vol. XII. 463p.
LAIA, S. A prática analítica nas instituições. Disponível em: <http://www.ebp.org.br/pdf/Sergio_Laia_A_pratica_analitica_nas_instituicoes.pdf > Acesso em: 21 abr.2008.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 3: as psicoses. 2. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988. 366 p.
QUINET, A. As 4+1 condições da análise. 9 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 115p.
______. Clínica da psicose. 2 ed. Salvador: Fator, 1990. 120p.
NOTA DE RODAPÉ
[i] Aluna do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Sônia Couto.