Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio; Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro”…
Sá Carneiro
Edna Maria Silva[i]
Para Augras (2000), o crescimento humano se define tanto no nível social, quanto individual do encontro com os demais, o que demonstra ser o mundo, essencialmente o mundo da coexistência.
Ainda segundo Augras,
a fenomenologia existencial postula que o mundo da coexistência não se estrutura em termos de oposição – ou de complementaridade – entre um sujeito e os diversos objetos que o rodeiam: “Os ‘outros’ não designam a totalidade daqueles que não sou, dos quais me separo, pelo contrário, os outros são aqueles dos quais a gente não se distingue, e entre os quais se encontra também”. Não se trata de justaposição, mas do encontro dentro do meio ambiente. (AUGRAS, 2000, p 55)
O ser humano é um ser-no-mundo; existe sempre em relação com algo ou alguém e compreende as suas experiências, ou seja, atribui-lhes significados, dando sentido a sua existência. Vive num certo espaço e em determinado tempo, mas os vivencia com uma amplitude que ultrapassa essas dimensões objetivas, pois consegue transcender a situação imediata; seu existir abrange não apenas aquilo que é e está vivendo em dado instante, mas também as múltiplas possibilidades às quais encontra-se aberta a sua existência (FORGHIERI, 1993, p.51).
A relação eu-outro, em sentido eminente, não pode, portanto, ser senão no diálogo. A linguagem leva efetivamente a cabo uma relação de tal sorte que os termos não são limítrofes nessa relação, que o outro, apesar da relação com o eu, segue sendo transcendente ao eu, mas uma relação, cujos termos não formam uma totalidade, somente pode produzir-se como intercâmbio entre o eu e o outro, como ‘cara a cara’. E para que essa relação se produza, faz necessário, inevitavelmente, poder dizer eu.
A relação, na qual se faz possível e se respeita a alteridade do ser, tem que começar sendo levada a cabo por um dos termos da relação, e tem que ser levada a cabo como o movimento mesmo da transcendência, ou seja, como o percurso dessa distância que realmente separa o eu do outro; em nenhum caso como assimilação ou como uma invenção psicológica desse movimento: “Em minha relação com o outro – disse Buber (1974) – seu ser é essencialmente outro que eu (distinto de mim); e esta alteridade sua é o que eu tenho presente, porque é a ele a quem eu ouço, eu a confirmo e quero que ele seja outro que eu.” A alteridade somente é possível, pois, a partir do eu, embora a relação com o outro e com o outro em sentido eminente só, se conheça na medida em que eu mesmo a realizo:
A presença nasce quando o tu se faz presente. O eu não confrontado com o tu na presença, o eu rodeado por uma multidão de conteúdos, não tem presente, somente o passado… Mas o ser verdadeiro é vivido no presente, enquanto a vida dos objetos está no passado. (BUBER, 1974, p. 87)
A relação é tomada, pois, como a categoria fundamental do ser: a realidade é constitutivamente relacional.
Contudo São Tomás define a relação como ‘afinidade entre dois seres segundo o que convém realmente um ao outro’, a relação só conspira a um ordo real, que é garantia e condição de perfeição dos seres, mas não a essência ontológica deles.
Nos interessa, no entanto, centrarmos no quién do ‘ser no mundo’ hedeggeriano, ou seja, o ente que ‘é no mundo’. Em relação a esse quién, diz Heidegger que pertencem a ele duas estruturas ontológicas da existência, tão originárias como o ‘ser no mundo’, que são o ser com e o coexistir. Ou seja que esse quién da existência humana ‘é no mundo’ de dois modos fundamentais: relacionando-se com as coisas do mundo objetivo, com os objetos que se constituem como tais, mostrando-se como utensílios e relacionando-se com outras existências humanas com as quais coexiste. Qualquer atividade humana implica na existência das coisas e de sujeitos humanos exteriores ao eu; o existir remete sempre ao outro e aos outros.
O quién é, pois, constitutivamente relacional: “Os outros – disse Heidegger (1990, p 223) – não quer dizer o mesmo que a totalidade dos restantes fora de mim da qual se destaca o eu; os outros são, antes de tudo, aqueles dos quais não se distingue um, pois entre os quais é também um”. Coexistir é, portanto, ser em comum com o outro; o qual permite que com ele possa encontrar-me.
Porém para Heidegger, esse sujeito da existência em comum não é nenhum existente determinado, nem o conjunto de todos os existentes, senão um sujeito essencialmente neutro, impessoal e inumano, a saber, o ‘se’ do ‘se diz’, ‘se faz’, ‘se pensa’, a generalidade anônima e niveladora. E pensa isso do seguinte modo:
Enquanto cotidiano ‘ser um com outro’ está no ‘ser aí’ debaixo do senhorio dos outros. Não é ele mesmo, os outros o tem arrebatado o ser. O arbítrio dos outros dispõe das cotidianas possibilidades de ser do ‘ser aí’. Mas estes outros não são determinados. Pelo contrário, pode representá-los qualquer outro… O quién não é este nem aquele; nem um mesmo nem a soma dos outros. O quién é ‘qualquer’, é das Man. (HEIDEGGER, 1990, p. 226)
De maneira que, posto que meu existir é coexistir e posto que os outros, sem sua impersonalidade, absorvem meu ser e são quienes, na realidade existem como sujeitos da existência comum, eu existo no mundo pendente de minha relação com os outros, fazendo o que se faz, pensando o que se pensa, dizendo o que se diz. Este se tira o homem em cada momento de sua responsabilidade. Em lugar de achar-se recolhida em si mesmo, a existência do ser humano se dissipa no ‘se’’. No pensamento do Heidegger (1990), a coexistência é um modo não autêntico de existir, uma trivialização da existência, por isso só a existência que se resgata de sua dissipação no ‘se’ chega a ser si mesma e, pelo mesmo, autêntica.
A coexistência autêntica está em deixar que os outros sejam livremente o que eles, por si mesmos, podem ser, solidão em comum na execução de um destino, que tem como horizonte a própria possibilidade de morrer.
Durante atendimentos realizados na Clínica, destacou-se a relação entre mãe e filha. Uma relação de conflito e controle, mas que foi definida pela mãe de J. como uma relação de cuidado, proteção e zelo.
J. queixa-se que está, a todo momento, sendo invadida, com uma sensação de sufocamento, como em suas próprias palavras “de não estar respirando”. Ao mesmo tempo, diz não ser ouvida e respeitada. ”Não posso fazer o que desejo, apenas o que ela deseja”.
TILLICH (1991, p. 72) nos lembra
Quando a relação amorosa não me conduz a mim mesmo, quando eu, numa relação de amor, não conduzo outra pessoa a si própria, este amor, mesmo que pareça a ligação mais segura e extasiante que já tive, não é amor verdadeiro.
Por meio da consciência de seu próprio ser, o indivíduo se tornará livre para tomar suas próprias decisões, definindo assim a direção que pretende dar para a sua vida. O ser humano está constantemente em processo de criar um mundo para si, pois está sempre aberto a mudanças. Mas essas mudanças precisam ser realizadas por meio de suas próprias escolhas e nunca submetidas ao outro.
REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 55 p.
BUBER M. Eu e Tu. 2ª ed. São Paulo (SP): Moraes; 1974. p. 87.
FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método e pesquisa. São Paulo: Pioneira, 1993. p. 51.
Heidegger, Martin. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 226.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1991.
NOTA DE RODAPÉ
[i]Aluna do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Raquel Neto.