Nívio Gabriel Brito Vieira[i]
A elaboração deste artigo foi fundamentada e construída na prática de atendimento clínico realizado na Clínica de Psicologia Newton Paiva, no estágio curricular de Psicologia Fenomenológica existencial Humanista e, mais especificamente, no atendimento de A. e sua vivência no Abrigo. A solicitação pelo atendimento psicológico partiu de seus pais adotivos e, inicialmente, era referente ao seu desempenho escolar. Em conversas com os mesmos, foram trazidas queixas do comportamento de A., tais como falar mentiras, pegar objetos alheios e entrar em conflito com os outros irmãos, que não são adotados. Durante os atendimentos, A. trouxe o desejo de rever a mãe biológica, que ele não via há mais de 4 anos, desde antes de ter sido adotada. Conforme Winnicott(2000, citado por Rodontaro 2002, p.3):
O roubo pode ser entendido como a busca de algo pela criança, a esperança de ainda encontrar o que procura. Na destrutividade, a criança busca a quantidade de estabilidade ambiental que poderá suportar a tensão que decorre de um comportamento impulsivo. (…) A criança provoca reações ambientais totais, como alguém que está procurando o corpo da mãe, os da mãe(…)
A., nos encontros realizados, mostrou-se bem retraída, sempre se posicionando com os membros bem rentes, as pernas juntas e os braços junto ao corpo. Falava em tom baixo, apenas quando solicitada, necessitando da intervenção constante por meio de questionamentos e perguntas. “Os meninos têm apresentado uma característica comum entre eles, à situação de abandono familiar, observando-se em quase todos baixa auto-estima” (RODONTARO, 2002).
Por outro lado, segundo o que a cliente relatou nos encontros, demonstrou ter desenvolvido maturidade e necessidade em construir sua existência e tentar se responsabilizar, o que é marcado principalmente na relação de cuidado que ela estabeleceu com os seus irmãos consangüíneos. De acordo com Teixeira (2006, p 291):
Em síntese, a existência individual caracteriza-se por três palavras-chave – cuidado, construção e responsabilidade – na medida em que o individuo cuida da sua existência procurando conhecer-se e compreender – se, descobrindo-se na relação com o outro, constrói o seu – mundo dando sentido à sua existência e escolhendo viver de acordo com os seus valores ( o que confere um caráter único e singular) e responsabiliza-se por si próprio na realização do seu projeto. Assim, a existência individual é uma totalidade, única (singular) e concreta.
Nos relatos sobre sua infância, ela conta que sua mãe não fazia comida para ela e para os seus 11 irmãos, que moravam em uma casa de quatro cômodos: cozinha, banheiro, o quarto da mãe e o quarto dos irmãos. A mãe comia e não dava para os filhos e depois que terminava, saia. A. dividia o que sobrava para eles. Quando não tinha nada, ela dava água com açúcar para os irmãos, relatando que só conseguia dormir depois que todos estavam alimentados. A única pessoa que os ajudava era a avó materna, que morava ao lado de sua casa e sempre levava biscoito e outros alimentos para eles quando a mãe não estava lá. A. relata que a mãe saía à tarde e só voltava de madrugada. Ela dormia na parte da manhã, bebia todos os dias e estava sempre com um namorado diferente, normalmente homens mais novos do que ela. Inclusive um desses homens, com o qual a mãe se relacionou, teve uma briga com ela e, durante este acontecimento, mostrou os órgãos genitais para os irmãos de A. Ela disse não ter visto, pois estava atrás dele. A avó viu a confusão e entrou em contato com o Conselho Tutelar, fazendo a ocorrência, e, no dia seguinte, algumas pessoas do Conselho foram lá e levaram A. e seus irmãos para o abrigo. Nesta época, a cliente estava com 6 anos e permaneceu abrigada até os 9 anos, quando foi adotada.
A cliente contou que ficou com nove irmãos em um abrigo, enquanto os dois irmãos mais velhos foram para outro, pois lá só recebiam jovens com menos de 17 anos. Sempre que possível, ia visitá-los no outro abrigo. Onde ficou, é descrito por ela como uma grande casa, cuidada por um casal. O coordenador era muito bravo e violento e batia sempre que alguma criança desobedecia ou quando ele achava necessário. A. diz que,apesar disso, eles eram “boas pessoas”. As regras no abrigo eram muito rígidas e, muitas vezes, a cliente não conseguiu dormir, lembrando da mãe, e cantava baixinho olhando para janela “…mamãe sumiu, mamãe sumiu…” e quando o senhor via que tinha alguma criança que não estava dormindo, ele batia. A. fingia que estava chorando para ele ficar com pena e não ser agredida. Uma de suas irmãs mais novas, que é muito bagunceira, apanhava sempre.
Conforme Teixeira (2006, p 293):
A história afasta-se do projeto por intermédio de vivencia de contradição interpessoal e/ou impessoal) na seqüência da qual o individuo escolhe afastar-se ou é afastado. A psicopatologia caracteriza-se essencialmente por uma existência limitada, tematizada e bloqueada. Limitada e aprisionada, porque afastada dos seus valores e da sua possibilidade de auto-afirmação. O individuo não experimenta a sua existência como uma realidade. Tematizada pelo seu passado, na medida em que o individuo continua a viver em função de uma identidade e características que já não são as presentes. Bloqueada no seu desenvolvimento, porque não consegue projetar-se no devir.
No processo psicoterapêutico realizado, foi possível observar que, apesar da cliente ter conseguido desenvolver-se em muitos aspectos, no momento presente da psicoterapia, apresentava-se ainda muito presa ao seu passado, tanto em relação à mãe biológica, no seu desejo constante de revê-la, como nas vivências do abrigamento, que estavam presentes no seu modo de expressar, que se apresentava embotado. Conforme descreve Levizon (2000, citado por Rodontaro 2002, p. 4):
Observamos que, desde o início de seu desenvolvimento, há perturbações sérias nas relações de objeto, resultante em muita sensibilidade frente a situações de separação e um medo exarcebado em serem abandonadas. Essas crianças devem ter ficado expostas a intensas cargas de ansiedade provenientes de situações como a separação da mãe, que deixa “marcas” em seu desenvolvimento. O medo de novas perdas das pessoas de quem dependem ou a quem estão ligadas parece acompanhar a criança como uma cicatriz dolorosa e pronta para se abrir a qualquer momento.
As graves consequências das vivências de separação da mãe e da vida nos abrigos trazem algumas características especificas de cada pessoa presente nas suas singularidades, nas relações e outras mais comumente compartilhadas entre esses jovens, tais como as dificuldades escolares e de aprendizagem e a baixa auto-estima. Estão presentes nas formas traumáticas, como a separação da mãe é feita e nas precárias condições relacionais estabelecidas nos abrigos. Sem dúvida, para uma criança ou adolescente, uma passagem por tal circunstância é vivenciada com muita tensão e angústia, que ficam reprimidas por não terem espaço para serem expressas.
De acordo com Teixeira (2006, p 293):
A ansiedade é ela própria um dado da existência com que o individuo se confronta inevitavelmente e que pode ser experimentado de forma mais intensa e significativa mais em certos momentos da trajetória existencial do que noutros. Por exemplo, pode associar-se a crises pessoais, luto, doença física, fases de transição do ciclo de vida individual ou familiar, entre outras situações.
Conforme descrição dos pais sobre a cliente, ela estava apresentado comportamentos que eram considerados pelo Conselho Tutelar como comuns em casos de adoção, como contar mentiras e furtar objetos sem necessidade concreta, causando muito transtorno e conflito na relação dos pais com a filha adotiva. No âmbito da construção de sua existência, sua principal referência foi a mãe. Mesmo não sendo um modelo que atendesse às suas necessidades, serviu para dar a ela esta referência, e o tempo do abrigo, já de forma oposta, mas da mesma forma marcante, deixou parâmetros sociais de ameaça e retenção.
O que vai ocorrer, muitas vezes, como no caso abordado, é que depois da adoção, mesmo quando os pais adotivos mantêm um bom relacionamento com o filho adotado, como no caso apresentado, conforme A. relatou nunca ter sido violentada pelos pais adotivos e ser tratada igual aos irmãos, que são filhos consangüíneos. Uma das hipóteses para esse comportamento é o sentimento oculto de achar que os pais adotivos a roubaram, tiraram da sua mãe, que fica mais nítido no constante pedido de A. de rever a mãe.
Atualmente, o que foi observado no caso apresentado, é algo freqüente na realidade social de muitas crianças e adolescentes, que, além de perder a tutela da mãe ou cuidador, perdem toda uma realidade experiencial de família e se deparam, muitas vezes, com a realidade institucional, na sua maioria cruéis e insensíveis com o sofrimento que eles vivenciam.
A necessidade de ser feita uma intervenção nesta realidade social que assola a vida de muitas crianças em nosso país é evidente e demanda não só um trabalho dos profissionais de psicologia, mas um trabalho multidisciplinar com todos os profissionais envolvidos com essas instituições. È preciso trazer para dentro do abrigo formas de lidar com as perdas que as crianças e adolescentes, muitas vezes, estão passando, e despertar sentimentos comunitários, de autonomia e solidariedade em suas vivências neste ambiente. Neste sentido a psicologia existencial humanista é de grande importância para direcionar o trabalho tanto com as pessoas abrigadas com as pessoas que trabalham no desenvolvimento de atitudes necessárias para uma melhoria desta realidade social. Conforme descritas por Teixeira (2006, p 294):
– Facilitar ao individuo uma atitude mais autentica em relação a si próprio
– Promover uma abertura cada vez maior das perspectivas do individuo em relação a si próprio e ao mundo
– Clarificar como agir no futuro em novas direções
– Facilitar o encontro do individuo com o significado da sua existência
– Promover o confronto com e a superação da ansiedade que emerge dos dados da existência
O desenvolvimento dessas atitudes vai possibilitar que a pessoa, independentemente do lugar que ocupe na sociedade, passe a se responsabilizar por sua existência, facilitando a abertura à construção de novas alternativas, dando sentido à sua vida e permitindo a auto-realização. E a partir daí, também vai se comprometer a responsabilizar pela existência do outro, gerando, assim, uma preocupação real com as questões sociais s quais não pode ser desvinculada.
REFERÊNCIAS
ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios constantes de uma psicóloga no abrigo. Psicol. cien. prof. [online], set. 2002, vol..22, no.3 [citado 1º Maio 2008], p.8-13. Disponível em: <http://pespsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci-arttext&pid=s1414-98932002000300003&1ng=pt&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.
LEVINZON,G. K. A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São Paulo, Editora Escuta, 2000.in ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios constantes de uma psicóloga no abrigo. Psicol.cien.prof. [online], set. 2002, vol..22, no.3 [citado 1º Maio 2008], p.8-13. Disponível em: <http://pespsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci-arttext&pid=s1414-98932002000300003&1ng=pt&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.
TEIXEIRA, Jose A. Carvalho. Introdução à psicoterapia existencial. Analise Psicológica (online). 2006, vol.3, n° 24 [citado 01 Maio 2008], p. 289-309. Disponível em: <HTTP://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/apsv24n3/v24n3a03.pdf>
WINNICOTT, D.W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro, Editora Imago, 2000. In: ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios constantes de uma psicóloga no abrigo. Psicol. cien.prof. [online], set.2002, vol.22, n° 3 [citado 01 Maio 2008], p.8-13. Disponível em: http://pespsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci-arttext&pid=s1414-98932002000300003&1ng=pt&nrm=iso>
NOTA DE RODAPÉ
[i]Aluno do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Raquel Neto.