Alice Ribeiro
Bruna Brandão
Halsey Douglas Ribeiro
Sheila Saviotti[i]
A Clínica-Escola de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva tem por finalidade possibilitar o exercício profissional de alunos mediante a aplicação dos conhecimentos teóricos adquiridos em sala de aula. Esta prática contribui, de maneira significativa, para a formação de profissionais, adequadamente habilitados e capazes de expandir as práticas psicológicas em consonância com as novas realidades e demandas sociais, políticas e culturais da atualidade.
Dessa forma, busca-se inserir os alunos de Psicologia num contexto sócio-histórico-político, o que exige desses uma postura ética com a sociedade. A oportunidade que a clínica oferece permite que o aluno amplie o seu olhar para que possa perceber melhor as pessoas que estão a sua volta e suas necessidades, os conflitos que interferem nas suas relações com o próximo e consigo mesmo. A clínica-escola, como um espaço para a produção de conhecimento, oferece um contexto que possibilita o estudo de práticas renovadas quanto à profissão, “[…] delineando ações mais produtivas para cada indivíduo, contribuindo assim para a sociedade como um todo […]” (LÖHR; SILVARES, 2006, p.17). Além disso, a Clínica-Escola também exerce um papel social de extrema importância, uma vez que oferece à população economicamente desfavorecida uma possibilidade de acesso a serviços psicológicos gratuitos ou de baixo custo financeiro (HERZBERG, 1996).
A Clínica de Psicologia do referido Centro Universitário organiza-se em três núcleos de formação: o Núcleo Psicoterapêutico, o Núcleo de Políticas de Saúde e o Núcleo de Gestão que sintetizam as ênfases curriculares processadas no curso de Psicologia. Neste artigo, serão tratados os aspectos mais significativos dos trabalhos desenvolvidos no Núcleo Psicoterapêutico, especificamente.
Desde sua criação, em 2007, o Núcleo Psicoterapêutico vem realizando diversas tarefas, tais como as inscrições de todos os clientes que procuram a Clínica, atendimentos de urgência ou, ainda, atendimentos dos clientes que constituem a lista de espera. Além dessas atividades de formação técnico-teórica, realizadas pelos estagiários, são desenvolvidas também ações de apoio aos eventos realizados na Clínica e no curso de Psicologia, acompanhamento e orientação dos estagiários do Plantão Psicológico, realização de oficinas de dinâmica de grupo para comentários dos filmes do New Cine Social, desenvolvimento de pesquisas etc.
Entre essas atividades, neste artigo, elegeu-se descrever como são realizadas as inscrições dos clientes que nos procuram. Aqui, e bem como em nossa prática cotidiana, essas serão tratadas como um acolhimento do cliente e seu sofrimento, pois este momento não se restringe a um preenchimento formal de dados cadastrais.
Ressalta-se que o atendimento psicológico é oferecido à comunidade externa, mas é também estendido aos alunos, funcionários e professores do centro acadêmico. Abrange atendimentos para crianças, adultos, adolescentes, idosos e famílias, que, a partir do acolhimento, são encaminhados para a psicoterapia e atendimentos em diversas modalidades, individuais, grupos, multifamílias, atendimento a crianças com dificuldades escolares, ludoterapia e, também, em orientação profissional.
Durante a inscrição, os estagiários não se propõem a responder à demanda do cliente, mas acolhê-la. Esse acolhimento tem como efeito uma escuta da queixa do cliente, que tanto “[…] possibilita uma compreensão diagnóstica, quanto a um melhor delineamento do encaminhamento a ser sugerido, à medida que damos ouvidos à demanda, o cliente pode ser de imediato, responsável por ela […]” (SALINAS; SANTOS, 2002, p.181).
A seguir, serão descritos fragmentos de algumas inscrições realizadas na Clínica, por estagiários do Núcleo Psicoterapêutico, e uma breve discussão clínica acerca destes casos. Observamos que, considerando o sigilo necessário, todos os nomes referidos nestes textos são fictícios.
Caso 1:
Gabriel, 23 anos, solteiro, 2º grau completo. Gabriel procura a clínica para realizar orientação profissional devido a sua indecisão e dificuldade frente às escolhas profissionais. Relata que, durante sua trajetória escolar, não conseguia acompanhar o desempenho da turma. Diz que se sentia excluído pelo fato de não obter o mesmo resultado que os seus outros colegas manifestavam nos festivais de conhecimento escolares. Gabriel revela-se dislexo. Gabriel relata ter presenciado sua mãe solicitar à professora que não o reprovasse para não ficar atrasado perante a turma, o que gerou revolta por subestimar seu potencial.
Caso 2:
Pedro, 4 anos, procura a clínica acompanhado de seus pais, Maria e José, com dificuldade em freqüentar a escola. Os pais relatam um episódio, no qual, devido a contratempos, atrasaram-se para buscar o filho, que chorou e não conseguiu segurar o xixi. Nesse momento, Pedro diz “fiquei com medo de me esquecerem na escola!”. José conta que desde então não consegue fazer com que Pedro vá para escola. Disse de uma segunda tentativa em agosto, mas foi em vão. Maria diz que além de não ir à escola, Pedro está com encoprese, retendo as fezes. Pedro interrompe e diz, “estou todo de azul como o Roberto”. Indagado sobre quem é Roberto, ele diz “Roberto Carlos Braga. Eu sei cantar uma música dele olha só: estou guardando o que há de bom em mim, para lhe dar quando você chegar. Toda ternura e todo o meu amor estou guardando pra lhe dar”. Pedro diz ser fã de Roberto Carlos e continua falando sobre música.
Caso 3:
Nina, 18 anos, 2º grau incompleto, separada, os pais residem no interior do estado, mora atualmente com as irmãs em Belo Horizonte. Nina procura a clínica devido à ocorrência de desmaios inexplicáveis e alega estar em um estado depressivo. Iniciou um namoro com João aos 16 anos e logo em seguida casou-se. Nina relata ter ficado com sequelas de sua primeira experiência sexual. Relata também episódios de agressão física pelo marido, situação que persiste mesmo após surgir a gravidez na vida do novo casal. Nina diz ter “perdido” o bebê após 2 meses de gestação. Nina relata que descobriu, por meio de terceiros, que sua mãe tem um caso amoroso com João, seu marido, o que resultou em sua principal motivação a se transferir para a cidade de Belo Horizonte.
Em relação aos casos acima relatados, percebe-se que a construção de um diagnóstico de um caso clínico fundamenta-se em uma investigação conduzida mediante um desvio de percepção do desejo do cliente, isto é, daquele que demanda. Estabelecer, precocemente, um diagnóstico para se decidir quanto à condução da cura pode ser inadequado, pois esse diagnóstico só terá confirmação após certo tempo de tratamento, em que o sujeito estará em constante modificação.
Levando em conta a importância do exercício da escuta proporcionada pelo contato direto com as pessoas, no âmbito da clínica, é notório que o processo de inscrição, tomado como um espaço de fala para o cliente, permite a esse colocar suas questões e suas angústias. “Em muitos dos casos, […] a demanda do sujeito é formulada por um outro (médico, professor, pai ou mãe, assistente social), o que geralmente dificulta a implicação do mesmo com sua queixa” (FILHO; FIRMINO, 2007, p.55).
No entanto, mesmo que o sujeito se apresente assim, com um discurso elaborado, podem ser realizadas intervenções, aliviando o sofrimento do sujeito no momento em que o mesmo apresenta um sofrimento emocional e maior necessidade de ser acolhido.
Infere-se, pelo discurso apresentado pelo sujeito, que suas queixas vão além da elaboração que é formulada por um outro, visto que, no ato do acolhimento, observa-se a necessidade de trabalhar questões que estão além do discurso apresentado por aquele sujeito. Essas questões são aquelas que aparecem de maneira expressiva, trazidas pelo cliente num relato que se torna até repetitivo. Diante dos casos relatados, observa-se esse fato no caso de Gabriel, no qual se deduz que esse cliente acaba por demandar, ainda no ato da inscrição, além da queixa inicial, de (des) orientação profissional, um atendimento terapêutico continuado, para, possivelmente, elaborar o significante dislexia.
Quanto ao caso de Pedro, podemos dizer que, no momento do acolhimento, há um endereçamento de algo dessa criança para o estagiário. Pedro, ao cantar uma música do “Roberto”, diz que guarda em si tudo aquilo que há de bom e que isso será dado ao outro num momento específico. Podemos inferir que essa criança utiliza a música como outra forma de linguagem para exprimir a sua relação com esse outro, e que só pode ser dito (cantado) a partir da abertura para fala nesse momento de acolhimento.
Já no caso de Nina, percebe-se, inicialmente, que ela se coloca numa posição de vítima diante da agressão do ex-marido. No entanto, pode-se compreender, pelo seu discurso, que a questão da demanda estabelece uma resposta em relação à função materna. Estaremos assim nos posicionando com um olhar diferenciado para uma “suposta” depressão e a condição do sujeito, como diria Lacan, na função de desejo do desejo do outro.
Destaca-se que o que permitiu tais inferências foi a escuta atenta e sensível realizada pelo estagiário, no ato mesmo da inscrição, possibilitando a esse compreender, com mais perspicácia, a necessidade do cliente, na tentativa de encaminhá-lo para um processo psicoterápico, que poderá trabalhar a sua demanda.
Diante do exposto, ressalta-se a relevância do atendimento psicológico, realizado durante a inscrição, como primordial para que os alunos estagiários se aperfeiçoem, colocando em prática o conhecimento teórico e, simultaneamente, possibilitando ao aluno conhecer e atualizar-se quanto às demandas contemporâneas. Como afirmam Löhr e Silvares (2006) é fundamental para a formação do psicólogo o contato direto com as pessoas na Clínica-Escola, o que, nesta prática aqui relatada, tem proporcionado, de fato, o exercício da escuta e da intervenção.
Portanto, observa-se que o acolhimento, realizado durante a inscrição nas clínicas-escola, além do seu objetivo primeiro de acolher, analisar a demanda, orientar e encaminhar para tratamento psicológico adequado permite uma escuta diferenciada, que poderá produzir efeitos terapêuticos no sujeito, levando em conta a particularidade de cada caso. Assim, no simples ato de uma inscrição, o estagiário, orientado por essa escuta cuidadosa, sensível e atenta, busca diferenciá-las, a fim de facilitar, criteriosamente, um encaminhamento a posteriori mais adequado, além de uma oportunidade de aprendizagem. Sabe-se que para “[…] o trabalho clínico, o saber nunca é suficiente, o que exige de todos os que lidam com o sofrimento humano uma formação permanente” (FILHO; FIRMINO, 2007, p.56).
REFERÊNCIAS
FILHO, José Tiago dos Reis; FIRMINO, Sueli Pelegrini de Miranda. Clínica-escola: desafios para a formação do psicólogo. In: FRANCO, Vânia Carneiro; FILHO, José Tiago dos Reis (orgs). Aprendizes da clínica: novos saberes psi. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p.49-62.
HERZBERG, E. Reflexões sobre o processo de triagem de clientes a serem atendidos em clínicas-psicológicas-escola. In: CARVALHO, R.M.L.L.(Org.). Repensando a formação do psicólogo: da informação à descoberta. v. 1, n. 9. Campinas: Editora Alínea, 1996. p. 147-154.
LÖHR, Suzane Schimidlin; SILVARES, Edwiges F. Clínica-Escola: Integração da formação acadêmica com as necessidades da comunidade. In.: SILVARES, Edwiges F.(org.). Atendimento psicológico em clínicas-escolas. Campinas: Editora Alínea, 2006. cap. I, p.9-22.
SALINAS, Paola; SANTOS, Manoel Antônio dos. Serviço de triagem em clínica-escola de psicologia: a escuta analítica em contexto institucional. In: Revista de Psicanálise. vol. 1, n. 9. São Paulo, 2002. p. 177-196. Disponível em: http< www.rerdalyc.ualmex.mr >. Acesso em: 30 out.2008.
NOTA DE RODAPÉ
[i] Alunos do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Merie Moukachar.