Ida Ramlow Oliveira[i]
A busca de uma representação que ofereça um bom entendimento para o sofrimento humano não é uma tarefa nada fácil. O sujeito que adoece vê-se diante de rupturas que atingem e ferem a sua vida e seus projetos, acontecimentos que podem levá-lo à depressão e à angústia, pois se vê à mercê do desconhecido.
Peres (1999, p. 245) relata que “A tristeza é considerada como afeto que permite nada querer saber sobre os efeitos do inconsciente, constituindo uma traição do sujeito a si mesmo, […] e a única covardia é a de ignorar o desejo que nos habita”.
Rozenbaum (2008, p. 11) aborda essa questão referida ao corpo e ao adoecer e coloca que “Aquilo que se passa no corpo, que é uma crise objetiva, pode se transformar em uma crise subjetiva […] como os sujeitos são constituídos de fala, eles precisam se reposicionar acerca do que lhes ocorreu”.
Apesar disso, a forma como o paciente se relaciona com sua doença e as posições que assume estão intrinsecamente relacionadas com a sua história de vida, com os mecanismos de enfrentamento que tem disponíveis, o que marca a singularidade de cada um. “Ao ser internado, o paciente traz consigo sua história. Sofre um processo de despersonalização, […]”. (ROZENBAUM, 2008).
Conforme a ONG Doe Vida[ii], o processo de hemodiálise, em geral, determina que o paciente se desloque de sua casa, em geral, três vezes por semana, e impõe-lhe uma condição necessária, na qual ele deve ficar conectado à máquina, por um período aproximado de quatro horas prescritas. Podem existir variações neste tempo de acordo com o peso e a idade do paciente.
É sabido que, quando alguém tem que passar por um processo curto ou longo de hospitalização, vive momentos que deixam marcas significativas em sua vida, apesar de sabermos que vários hospitais encontram-se preparados, são representantes da grande luta pela saúde e contam com especialistas e tecnologias avançadas.
Isso é percebido com muita freqüência e intensidade no caso de pacientes com Insuficiência Renal Crônica – IRC, que são acolhidos e submetidos por um longo tempo de suas vidas aos cuidados médico-hospitalares. O sujeito, quando toma conhecimento de uma doença grave, pode adoecer de diversas formas, ou seja, pode ter como repercussão outro adoecimento, como a depressão, por exemplo. Conforme Almeida (1999, p. 119), “no fenômeno da depressão, encontramos uma renúncia do sujeito a si mesmo, que só pode ser verificada através de sua fala; para isso, é necessário que alguém o escute”.
Tendlarz (1997, p.28) expõe que, “Pelo fato de falar, o homem torna-se um ser de demanda […] a demanda metaforiza a necessidade, sem recobri-la por completo. O resto dessa operação é o desejo”. Ao ser escutado, o sujeito pode ser capaz de enfrentar seus problemas e suas angústias, dando real significado a seu cotidiano.
Como estagiária em um Centro de Hemodiálise, escuto Maria Angélica[iii], 45 anos, divorciada, mãe de dois filhos adolescentes, que traz em seu discurso inicial sobre sua inserção no processo de hemodiálise várias questões, tais como: ameaça da morte, sentimentos ambivalentes, preocupações com a imagem e mudanças, sentimento de desânimo, incertezas, relacionamento familiar conturbado, espera pelo transplante, expectativas para o futuro, tentativas de aceitação, e momentos de fé e esperança.
Maria Angélica relata que, antes de receber a notícia sobre seu estado crônico (IRC), tinha uma vida tranquila, muita disposição para recomeçar sua vida amorosa. Ela se dizia uma pessoa alegre, de bem com a vida, adorava sair com os amigos para dançar e “jogar conversa fora”.
Ela relata o momento em que recebeu a notícia de seu médico de que estava muito doente e que a coisa era séria: “Você está com sérios problemas nos rins, e a hemodiálise será inevitável”, disse-lhe o médico.
O novo discurso, as informações novas, a falta de conexões e o entendimento das mesmas causavam-lhe medo do desconhecido. Uma grande quantidade de surpresas e informações foram-lhe passadas sobre sua atual realidade, mas algo lhe pesava á consciência, dizia ela: “ou a máquina, ou a debilidade até a morte”. Era preciso tomar uma decisão urgente, fazer uma escolha. Escolher viver!
Numa tentativa aparente em negar a sua nova realidade, demonstrava ainda não conferir entendimento e aceitação à doença e ao tratamento, resgatando, então, em sua fala, valores como a fé e a esperança, “tenho certeza, muita fé em Deus, que ele vai me tirar dessa; estou frequentando uma igreja, e tenho fé que meu rim vai voltar a funcionar”.
Ela vivia rodeada de amigos, baladas, passeios e muita diversão. E agora, ao conviver com a máquina e a dependência da mesma para viver, surge a angústia ao falar da impossibilidade de sair com amigos, para se divertir como antes. Estava definido e determinado um outro momento.
Hoje, Maria Angélica passa boa parte de seu tempo dentro de um centro de tratamento de diálise, definindo claramente em seu discurso os obstáculos aos seus desejos, mas um tempo possível para construir a possibilidade de exercer escolhas.
Cabe a ela uma nova construção de vida, adquirir entendimento e elaboração da doença, que não é aguda ou transitória, mas crônica, permanente. Quinet (1999, p. 90), faz referência a este momento de elaboração do sujeito, expondo que “todas essas perdas têm um significado: castração, o que resume os ‘determinantes finais e definitivos’. Eis por que são dolorosas, e o sujeito, para sair da dor, deve fazer o luto do que perdeu”.
O sujeito implicado no seu acontecimento se orienta pelos limites determinados, mas define possibilidades de descobrir e inventar maneiras de lidar com o seu desejo. Assim nos diz Quinet (1999, p. 89):
Oferecendo um tratamento pela via do desejo, a psicanálise torna possível para o sujeito o caminho que parte da dor de existir e segue em direção à alegria de viver. Para isto, todavia, é necessário que o sujeito queira saber, tendo a coragem de se confrontar com a dor que morde a vida e sopra a ferida da existência, a fim de fazer da falta que dói, a falta constitutiva do desejo.
A psicanálise no hospital possibilita ao sujeito a construção de um saber sobre sua causa. E na hemodiálise seria possível essa construção? Moretto[iv] (2000) deixa o seguinte questionamento: “Por que não trabalhar com psicanálise, justamente aonde aquele que sofre necessita falar de sua dor com um profissional?”.
Assim, alcança boas chances de dar um tratamento à subjetividade do paciente em diálise, que está conectado a um sofisticado aparelho, que executa as funções antes feitas dentro do seu próprio corpo. O psicanalista tem a função então de escutar para que possa advir o sujeito desejante, pois é desse sujeito do desejo que a psicanálise se ocupa. Escutar além da queixa orgânica, pois o sujeito que ali pulsa, necessita movimentar-se para lidar com as consequências da doença e com todas as limitações que a mesma lhe impõe.
A possibilidade para o sujeito de ser escutado e de se escutar pode levá-lo a mudanças de posição e conferir-lhe autoria responsável de um novo projeto, no qual reconhece os limites e conta com porções do desejo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Consuelo Pereira de. Depressão: Doença do discurso. In: Extravios do desejo – depressão e melancolia. Org. QUINET, Antônio. Cidade: Ed. Marca d’Água Livraria, 1999. P. 117 – 119.
PERES, Maria Sueli. Morrer de Banzo. In: Extravios do desejo – depressão e melancolia. Org. QUINET, Antônio. Cidade: Ed. Marca d’Água Livraria, 1999. P. 245 – 251.
ROZENBAUM, Regina. Psicologia Hospitalar. Estado de Minas. Belo Horizonte, 6 jun. 2008. Opinião, p. 11.
GUINET, Antônio. A tristeza: Mal-dizer o desejo. In: Extravios do desejo – depressão e melancolia. (Org.) __________. Cidade: Ed. Marca d’Água Livraria, 1999. P. 7 – 12.
_______________. Atualidade da Depressão e a dor do existir. (Org.) GUINET, Antônio. Cidade: Ed. Marca d’Água Livraria, 1999. P. 87 – 94.
TANDLARZ, Silvia Elena. A constituição do sujeito. In: De que sofrem as crianças: a psicose na infância. Trad. CLEINMAN, Betch., Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras Ltda, 1997. P. 27 – 50.
MORETTO, Maria Lívia Tourinho. Agência USP de notícias. São Paulo, 31 de agosto de 2000 n.594/00. Disponível em:< http://www.usp.br/agen/bols/2000/rede594.htm>. Acesso em: 28 out. 2008.
NOTAS DE RODAPÉ
[i] Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Tânia Simão.
[ii]A Associação Doe Vida é uma entidade que foi oficialmente inaugurada em 16 de agosto de 2003. Disponível em: http://www.doevida.org.br/hemodialise.html.
[iii] O nome Maria Angélica é fictício a fim de preservar a identidade da paciente.
[iv] Maria Lívia Tourinho Moretto, psicóloga responsável pelo Serviço de Psicologia da Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. <http://www.usp.br/agen/bols/2000/rede594.htm>.