Wânier Ribeiro[i]
Heidegger (2000) aponta para a disposição e compreensão como as características existenciais fundamentais à abertura do ser no mundo, já que toda a compreensão abriga em si a possibilidade de interpretação. A linguagem, por sua vez, constitui, existencialmente, a via de acesso à compreensão, sendo assim, o discurso é a articulação da compreensibilidade. O que pode ser articulado no discurso é chamado por Heidegger de totalidade significativa, podendo ser desmembrada em significações. Essas sempre possuem um sentido que é particular ao ser-no-mundo. Sendo o discurso a articulação significativa da compreensibilidade do ser-no-mundo ele pertence ao ser-com. Assim, a convivência possui a característica discursiva e “o referencial do discurso é sempre interpelado dentro de determinados limites e numa determinada perspectiva” (Heidegger, 2000).
No discurso está implícito ou explícito o dito dos desejos, das perguntas, dos pronunciamentos. Para Heidegger, o fenômeno da comunicação deve ser compreendido em um sentido ontologicamente amplo. Para se apreender a essência da linguagem, é necessário percebê-la nos seus momentos constitutivos: o referencial do discurso (aquilo sobre o que se discorre), a comunicação e o anúncio.
As tentativas de se apreender a ‘essência da linguagem’ sempre se orientaram por um destes momentos singulares, compreendendo a linguagem com base na idéia de ‘expressão’, ‘forma simbólica’, comunicação no sentido de ‘proposição’, ‘anúncio de vivências’ ou ‘configurações’ da vida. Uma definição da linguagem em nada ganharia se pretendesse reunir sincreticamente esses diversos pedaços de determinação. (Heidegger, 2000, p. 221-222)
A proposta decisiva, nesse sentido, é elaborar a totalidade ontológico-existencial da estrutura do discurso, tendo como fundamento a analítica existencial do Dasein[ii]. Devido a essa questão, a conexão do discurso e a sua compreensão tornam-se claras “a partir de uma possibilidade existencial inerente ao próprio discurso, qual seja, a escuta” (HEIDEGGER, 2000, p.222).
Para compreender bem, é necessário escutar bem. Escutar bem significa estar aberto ao outro como “ser-com” para o “poder-ser” mais próprio do escutado. Na escuta, o que se propõe, em primeiro lugar, não é o que se pronuncia na articulação sonora, mas a compreensibilidade sobre o que se discorre, pois só daí subsiste a possibilidade de avaliar o modo de dizer. Assim, “discurso e escuta se fundam na compreensão. A compreensão não se origina de muitos discursos nem de muito ouvir por aí, somente quem já compreendeu é que poderá escutar” (HEIDEGGER, 2000, p.213).
O homem se revela como um ente que é no discurso, isso quer dizer que o homem se realiza na descoberta de “si-mesmo” e do mundo pela linguagem.
O silêncio, outra possibilidade constitutiva do discurso, é fundamentalmente existencial. Aquele que silencia no discurso da convivência pode elaborar a compreensão, às vezes melhor do aquele que não perde a palavra. Tem-se, dessa forma, que falar muito sobre algo não assegura a compreensão sobre o fenômeno. Ao contrário, Heidegger assinala que discursos prolixos encobrem a clareza e a compreensão do dito. É importante esclarecer que silenciar não significa emudecer, visto que também o mudo pode silenciar. O silenciar pode revelar um discurso autêntico, pois o silêncio mostra que o Dasein tem algo a dizer. O silêncio abafa o falar, mas expressa de outra forma a necessidade de se ser escutado, por isso o silenciar, como modo de discurso, articula originariamente a compreensibilidade do Dasein. Já o falatório, que segundo Heidegger significa um fenômeno positivo constitutivo do modo de ser cotidiano, é por outro lado “a possibilidade de compreender tudo sem se ter apropriado previamente da coisa” (HEIDEGGER, 2000, p.229). Isso significa que a compreensão constitutiva do falatório não é estruturada, ou seja, por si mesmo encobre-se e fecha-se do que lhe vem ao encontro, devido à dificuldade de retornar ao fundamento do referencial. Sendo assim, o falatório não necessita da intenção de enganar ou enganar-se, pois esse modo de ser não apresenta conscientemente algo como algo, posto que carece de fundamento, transforma a abertura em fechamento. Dessa forma, muitas coisas que o homem aprende e conhece não ultrapassam uma compreensão mediana.
O Dasein, que se mantém no falatório, oscila e distancia-se da abertura em relação a si próprio ao mundo e aos outros, atingindo um contínuo desenraizamento do ser.
A importância da psicoterapia está situada justamente no enraizamento do ser, desentranhando um novo modo de ser do Dasein, se antes se achava em toda parte e ao mesmo tempo em parte alguma, com o processo terapêutico, busca-se situar o Dasein em alguma parte. Se antes o Dasein se ocupava em se tornar livre de si mesmo, livre do ser junto aos outros e ao mundo, com o processo terapêutico, a possibilidade da aproximação existencial, relativa a esse três aspectos, se torna mais orientada. Isto não quer dizer que o processo terapêutico sempre possibilitará tal abertura, para tanto é necessária a aceitação da angústia, que ameaça a falsa compreensão do “ser-si-mesmo”.
Por meio da linguagem, o terapeuta poderá contribuir para uma compreensão mais aprofundada do existir do escutado, devendo tomar o cuidado de perceber que o discurso revela, pelo silêncio ou falatório, as características essenciais que o Dasein é ou pode” vir-a-ser”. Portanto ao terapeuta cabe saber escutar bem para compreender as formas de fuga de si mesmo que o Dasein pode apresentar, não se deixando enganar pelo dito ou não-dito, anunciados pelo discurso.
NOTAS DE RODAPÉ
[i] Professora Dra. do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, supervisora de estágios clínicos em fenomenologia-existencial, Coordenadora da CAMT- Clínica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e ao Tratamento da Toxicomania. wanierribeiro@gmail.com
[ii] Dasein (palavra de origem alemã), Da= aí e sein= ser. Ser- no- mundo como projeto, como estrutura de realização constante é o que caracteriza o ser do homem e esta estrutura é o Dasein. Ela evoca o processo de constituição ontológica do homem. É no Dasein que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história (Heidegger, 2000).