Poliana Mayra Teixeira Lopes [i]
INTRODUÇÃO
Este artigo discorre sobre o estudo de caso clínico de F., tendo como pressupostos teóricos a abordagem fenomenológica existencial. Propõe-se elencar a inautenticidade e o comprometimento das relações interpessoais (MITWELT) vividas por F. e percebidas no decorrer dos atendimentos psicoterapêuticos.
F. foi encaminhado à Clínica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e ao Tratamento da Toxicomania – CAMT, pela Central de Penas Alternativas – CEAPA, que, segundo ele, por “uma besteira, uma briga familiar”. O pai de F. não aceitava ter um filho dependente químico em casa, para ele, isso era uma falta de vergonha, motivo esse que levava a várias brigas. Em uma dessas brigas com o pai, F. fez uma ameaça a ele, e o mesmo o entregou à polícia.
F. recebeu, então, uma pena alternativa a ser cumprida em seis meses, com seis horas semanais, na Escola Integrada – Projeto com crianças e adolescentes, adotado pela Newton Paiva em parceria com escolas municipais; podendo essa pena ser convertida em tratamento.
Diante disso, F. está em tratamento na CAMT desde o dia 6 de maio de 2008 e frequenta a Escola Integrada, trabalhando com crianças, com a atividade de futebol, na quadra poliesportiva, situada dentro da Clínica de Psicologia da Newton Paiva.
1. HISTÓRICO PESSOAL DE F.
F., sexo masculino, 34 anos, divorciado, três filhos, ensino médio completo, desempregado. Reside, atualmente, com os pais, após a separação conjugal. Depois da sua separação, ele reencontrou sua namorada da adolescência, mantendo um relacionamento de um pouco mais de dois anos. Mas essa namorada terminou o namoro, não entendendo ele até hoje o porquê.
F. responde, também, a um processo judicial devido ao não pagamento de pensão alimentícia aos filhos. Relaciona-se bem com a mãe e a irmã, mas diz não ter um bom relacionamento com o pai. Relata que sempre brigou com ele e que, infelizmente, é comum isso acontecer. Conta que, desde pequeno, escutava sua mãe dizer que a briga dele com o pai começou antes mesmo dele nascer, “na barriga já brigava com meu pai” conta F.. Diante de tantos conflitos com esse pai, F. foi preso após ameaçá-lo. O pai chamou a polícia para ele e por isso cumpre uma pena alternativa na Escola Integrada.
F. estava em atendimento psicoterapêutico na CAMT com outra estagiária, mas essa se formou e não pôde dar continuidade ao processo, fazendo assim com que eu recebesse F. como meu cliente.
Meu primeiro contato com F. foi dia 8 de setembro de 2008. A sua demanda pelo atendimento psicoterapêutico chegou até a mim como uma solicitação de urgência, devido a uma tentativa de suicídio pelo término do seu último relacionamento amoroso.
2. A INAUTENTICIDADE E O COMPROMETIMENTO EM MITWELT
A partir da psicologia fenomenológica existencial, pode-se entender essa tentativa de suicídio de F. como uma atitude inautêntica.
A inautenticidade pode ser vivenciada por uma queda objetiva ou subjetiva. A queda subjetiva pode “ocorrer quando a pessoa vive em grande parte, em função dos ditames dos outros, deixando que estes determinem o seu modo de existir. Isso significa omitir-se da responsabilidade de ser-si-próprio” (RIBEIRO, 2002/2003, p. 582).
A queda objetiva pode ser caracterizada “quando há uma eleição por um objeto que anestesie os conflitos existenciais, associada ao valor simbólico que o mesmo representa na dimensão imaginária de cada pessoa em particular” (RIBEIRO, 2002/2003, p. 582). Esse objeto usado para anestesiar os conflitos existenciais, no caso de F, é a droga. Ele é dependente químico desde os 18 anos.
A primeira droga utilizada pelo cliente foi o álcool, aos 18 anos, aos 23, a cocaína e aos 32, o crack. Atualmente faz o uso excessivo de álcool, levando-o assim, segundo ele, ao abuso da cocaína. Ele diz que “o uso do álcool é o gatilho para as outras drogas, uso principalmente quando brigo com meu pai, quando estou em depressão por causa do “quadro bipolar”, quando brigo com a namorada (…)”.
F. foi diagnosticado por um psiquiatra do posto de saúde, a algum tempo atrás, como portador de Transtorno Afetivo Bipolar – TAB, e, desde então, usa esse diagnóstico em benefício próprio, para explicar suas alegrias eufóricas e tristezas melancólicas. Esse diagnóstico ainda não pôde ser confirmado, segundo o psiquiatra da CAMT, devido ao fato de o cliente não estar abstinente das drogas, pois essas geram sintomas semelhantes aos estados de mania e ou depressão apresentados pelo quadro bipolar.
O diagnóstico parece não proceder, devido aos traços característicos demonstrados pelo cliente, a evolução clínica, que vem sendo apresentada, bem como a suspensão de alguns medicamentos e o não desencadeamento de crises.
F. demonstra pouca habilidade na dimensão afetiva e nas relações interpessoais, muitas vezes mantendo um comportamento mais próprio de um adolescente do que de um adulto. Suas relações de trabalho e social apresentam-se restritas, devido à sua condição de “desempregado” e devido ao seu afastamento em relação aos outros. Sempre que faz referência à sua posição profissional, o faz por meio de um discurso de grandeza, apontando uma possível necessidade de auto-afirmação, e até mesmo de uma negação em se implicar com a real situação financeira e profissional. Isso demonstra sua pouca habilidade na dimensão da práxis.
Na psicoterapia, vem sendo trabalhada com F. sua dificuldade em assumir as responsabilidades de sua própria vida.
Segundo BINSWANGER (1967), existem três aspectos de ser-no-mundo: Umwelt (mundo ao redor), Eigenwelt (mundo pessoal) e Mitwelt (mundo interpessoal). Esses três aspectos são simultâneos do mundo e caracterizam a existência da pessoa como ser no mundo. Mitwelt é o mundo dos relacionamentos interpessoais, da partilha de valores e da interação comunitária.
Quando o ser humano é colocado no espaço dialógico da vida comunitária é que ele pode, vendo-se no espelho do outro, reformular o autoconceito ao mesmo tempo em que reconstrói os significados de seu mundo. “A compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência, e ao mesmo tempo constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro”, (Augras 1996, p. 56).
Em F., percebe-se que Mitwelt se destaca como muito comprometido pelo fato de o cliente ter dificuldades interpessoais em se relacionar com o pai, com as mulheres (ex-esposa e ex-namoradas) e com os próprios filhos. No fim do seu último relacionamento, F. tenta suicídio, pois acredita que sua vida não tem mais sentido sem a companheira. Ele é bastante dependente nas suas relações, delegando a sua vida ao próximo e anulando-se como ser existente.
Esses são pontos que têm sido trabalhados com o F. no intuito de criar possibilidades para que, no que diz respeito aos vínculos afetivos e à construção de uma relação harmoniosa, possam, não somente ser de responsabilidade dos outros, mas de sua própria responsabilidade.
Segundo MAY (2000 p. 111-113), não é tarefa simples desvincular-se de alguém. Esse corte se concretiza numa grande explosão de liberdade, ou num “estouro” contra os pais. A pessoa anseia em permanecer em um nível imaturo, atada ao cordão umbilical psicológico e recebendo a pseudoproteção e os mimos dos pais, em troca da independência. A questão é demorada e de difícil evolução para novos planos de integração – evolução significando não um processo automático, e sim reeducação, descoberta de novas idéias, tomada de decisões conscientes e uma boa vontade constante para enfrentar lutas ocasionais ou frequentes.
Liberdade é a capacidade do homem de contribuir para sua própria evolução. (…) A liberdade revela-se assim na maneira como nos relacionamos com as realidades deterministas da vida. (…) A liberdade revela-se no ajuste da própria vida com a realidade. (…) A liberdade, portanto, não é apenas uma questão de dizer sim ou não diante de uma decisão específica. É a força de amoldar e criar nós mesmos. É a capacidade para dizer como Nietzsche, de nos tornarmos o que verdadeiramente somos. (MAY, 2000, p.134-137)
Durante a psicoterapia, vem sendo reelaborado com F. a questão da sua dependência em relação ao outro, possibilitando-lhe descobrir em que ponto se dá esse aprisionamento e, com isso, refletir sobre a sua capacidade de amar e realizar-se, viabilizando libertar-se tanto dessa dependência subjetiva (interpessoal), quanto da dependência química.
Quanto às questões profissionais, o trabalho na psicoterapia tem sido para criar possibilidades para que o cliente possa desenvolver maior conscientização quanto a sua real situação profissional e econômica, e ainda da necessidade de uma ação em busca de sua independência e de sua implicação na participação da criação de seus filhos.
Atualmente, os atendimentos de F. estão suspensos, pois ele está em treinamento em uma empresa, onde conseguiu um emprego, o que tem dificultado seu comparecimento ao tratamento, pois ainda não conseguiu disponibilidade de horários no trabalho para voltar a cumprir a pena alternativa e continuar seu tratamento na CAMT. Mas pode-se dizer que a conquista desse emprego foi de grande importância no seu tratamento, pois percebe-se uma movimentação e uma evolução no seu processo clínico.
REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão, fenomenologia da situação de Psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1996.
Binswanger, L. O caso de Ellen West: estudo antropológico-clínico. In Rollo May & H. Ellenberger (Orgs.), Existencia, nueva dimensión en psiquiatría y psicología. Madrid: Gredos, 1967.
MAY, Rollo. A descoberta do ser: estudo sobre a psicologia existencial. 4.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
RIBEIRO, Wânier A. Identificação precoce do alcoolismo: uma estratégia interdisciplinar de Prevenção. In_Iniciação Científica Newton Paiva: 2002-2003. Belo Horizonte: Newton Paiva,2004.
NOTAS DE RODAPÉ
[i]Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Wânier Aparecida Ribeiro.