Welber de Barros Pinheiro[i]
Fernando Dório[ii]
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo trazer as contribuições da Daseinsanalyse para um estudo de caso. Foram trabalhados os principais conceitos da Daseinsanalyse e sua aplicação na clínica. Pedro (nome fictício) foi atendido durante nove sessões na clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva sob a supervisão do professor Fernando Dório.
Palavras-chave: Daseinsanalyse. Psicoterapia. Fenomenologia.
A Daseinsanalyse permite compreender o homem segundo as dimensões que são específicas ao ser humano. Baseia-se na fenomenologia como um meio de aproximação e desvelamento dos fenômenos do ser e do existir humano. Isso quer dizer que o existir humano deve ser compreendido de acordo com as dimensões específicas do ser a luz de sua própria experiência. (CARDINALLI, 2005) Porém:
A tarefa da terapia daseinsanalítica é libertar o paciente para a sua tarefa de se aproximar da sua historia […] ela trata o paciente, com o propósito de ampliar a liberdade dele para que ele possa fazer a sua própria historia. Não o passado, não o presente, não o futuro, não a conduta, não o sintoma, mas a totalidade da sua historia: é essa nossa referência na clínica psicológica. (POMPEIA, 2005, p. 42)
Cardinalli (2005, p. 58) afirma que “[…] o foco da situação terapêutica é a maneira como determinada pessoa está se relacionando consigo mesma, com os outros e com tudo que se apresenta em seu mundo.” Percebe-se então a importância em se escutar a dinâmica da existência do cliente.
Para exemplificar o tema proposto, foram trabalhados alguns fragmentos do estudo de caso Pedro. Pedro tem 12 anos, mora com os pais e foi encaminhado para a clínica de Psicologia pela escola em que estuda. Segundo seu relatório de encaminhamento, Pedro se recusa a fazer as atividades dentro da sala de aula, não presta atenção às aulas e faz muita bagunça. Na ficha de inscrição da clínica, Carmen (nome fictício) sua mãe, atribui que tais problemas enfrentados por Pedro na escola, se referem à perda de um irmão há sete meses com leucemia, fato este que tem abalado toda a família.
A Daseinsanalyse vai dizer que para se conhecer melhor o mundo do cliente, é necessário ir além da coleta e da elaboração de dados trazidos pelo cliente ou sobre ele. É necessário compreender o outro, na maneira de como ele vive, de como se apresenta ao outro, pensa, reage e sente. (SPANOUDIS, 1997)
Parte da tarefa do psicoterapeuta é escutar o cliente da forma como se apresenta, e não o fixar em rótulos e queixas que vêm de fora. Como no caso de Pedro, tanto a escola quanto a mãe dizem dele e por ele, mas o que Pedro diz?
Durante as sessões, Pedro traz sempre em sua fala o discurso do outro, o que os outros dizem e pensam dele. Pedro vivencia no setting terapêutico a dificuldade em fazer escolhas e se responsabilizar por elas. Diz sempre que “tanto faz” (sic) ou que o terapeuta pode escolher por ele. As sessões foram marcadas por muitos momentos de silêncio. “[…] para uma coisa nova germinar, ela precisa do vazio de um espaço, da calma de um momento […]”. (SAPIENZA, 2008, p.15)
O foco do trabalho psicoterápico é favorecer a aproximação e a compreensão do paciente da sua própria experiência […] refere-se à totalidade de relações referentes e significativas que constituem o mundo de uma determinada pessoa […] este entendimento da existência humana não considera que a experiência do paciente se mostra de forma explícita e patente, pois o existir inclui o movimento de encobrimento e de ocultamento. (CARDINALLI, 2005, p. 59)
Em determinado momento de uma das sessões, Pedro pergunta ao terapeuta se ele atendia outras pessoas ali, assim como ele. Se essas pessoas melhoravam. Quantas vezes mais ele deveria voltar e se quando terminasse o terapeuta, chamaria sua mãe e contaria a ela o que está acontecendo. O Terapeuta pontuou se ele tinha algo a ser melhorado, Pedro diz rapidamente que não, “que não tem jeito eu não gosto mesmo de escola” (sic).
Foi à primeira vez que Pedro falou de si, o que ele pensa e sente sobre o que os outros falam dele. “Terapia é um pouco isto: uma rara ocasião de aprofundar o pensamento em coisas que, a primeira vista parecem ser simples questões de opinião, já resolvidas, mas que, na verdade, precisam ser pensadas”. (SAPIENZA, 2008, p. 36)E foi a partir dessa abertura de Pedro que se conseguiu trabalhar algumas questões incômodas para ele. Algumas sessões foram realizadas na sala de brinquedoteca. Pedro, na interação com jogos e brincadeiras, trazia muito de si e de suas dificuldades. Porém, ficou claro, que o recurso lúdico da brinquedoteca havia se esgotado e tanto Pedro quanto o terapeuta, estavam aliviando a angustia do silêncio neste lugar.
Fato este que movimentou o terapeuta a chamar Pedro para o centro dos acontecimentos de sua vida. O terapeuta pontuou que não iriam mais precisar daquela sala de brinquedos para conversar. Após alguns minutos de silêncio, o terapeuta retoma com Pedro o motivo pelo qual ele se encontra ali, na clínica de Psicologia, das queixas feitas pela escola e o que ele pensava disso. Tanto a escola quanto a mãe de Pedro diziam que a perda de seu irmão estava proporcionando a ele todos esses problemas na aprendizagem. Pedro ficou surpreso com esse discurso e diz não gostar de falar neste assunto. Cardinalli diz que:
[…] a maneira como o paciente está podendo ser, mais imaturo, dependente ou distanciado dele mesmo, é o ponto de partida do trabalho do terapeuta; e, muitas vezes a primeira tarefa terapêutica é ajudar o paciente a admitir e aceitar o seu sofrimento e suas limitações, de tal forma que ele possa se aproximar e se apropriar de seu modo de ser mais restrito. Este modo de ser do paciente apresenta certa afinação ou tonalidade afetiva e uma compreensão especifica de si mesmo, do outro e do mundo, que no inicio do trabalho terapêutico, muitas vezes, não pode ser tematizada e esclarecida pelo próprio paciente. (CARDINALLI, 2005, p. 61)
Em uma das sessões, Pedro conta de suas dificuldades na escola, de estar fazendo algo complexo e de repente não conseguir mais se concentrar. Refere-se à morte do irmão como “negosso”, diz não gostar de falar sobre isso, pois fica triste e começa a lembrar do irmão durante grande parte de seu dia, ficando parado e olhando para o nada. Para Cardinalli:
[…] o lócus onde efetivamente ocorre o tratamento, pois é ai que surge a oportunidade de ocorrer mudanças na vida do paciente, seja no sentido de ele saber mais dele mesmo e ampliar a compreensão do seu viver, quando de estabelecer novas maneiras de existir. Assim, o paciente junto com o terapeuta poderá perceber e desenvolver os seus modos de existir. (CARDINALLI, 2005, p. 60)
Entretanto, Pedro, reflete e diz sobre a possibilidade de ser por isso que a professora, conforme suas palavras: “pega no meu pé” (sic). Descreveu vários sentimentos em relação ao irmão: saudades, medo de ficar pensando nele, e lembranças dele no hospital sentindo dor. Após alguns instantes pede para se aproximar da janela, estava com falta de ar. Em seguida pronuncia estar sentindo-se bem, sorri e pergunta ao terapeuta: “como vocês fazem isso? Fazer a outra pessoa falar de coisas que ela não quer falar” (sic).
Terapia é um pouco isto: oportunidade de o paciente poder olhar, de novo, para o que foi vivido e passou – ou não passou -, para o que é vivido agora, e autenticar tudo como sendo dele, como sendo ele […] possibilidade de dirigir um olhar diferente para a própria existência e, assim, reformular significados. (SAPIENZA, 2008, p. 25)
A próxima sessão ocorreu no começo do semestre seguinte. Pedro chega ao atendimento pedindo para sair mais cedo, pois iria tocar. Ele faz parte de um grupo de percussão da comunidade onde mora. Desde a morte do irmão ele havia se afastado do grupo. Falou um pouco de sua viagem, das coisas que fez e da mudança de escola. Relatou conhecer todo mundo na escola e que até agora está tudo bem.
O homem é compreendido com o contexto real e concreto em que vive, e, mesmo se for indiferente a isso, esse ser indiferente é uma escolha, e seu modo de responder as solicitações de seu mundo, de seu tempo. Não há a desculpa de se dizer determinado pelos fatos que configuram uma situação. (SAPIENZA, 2007, p. 36)
A nona e última sessão, foi marcada pelo pedido de Pedro para finalizar os atendimentos. Pedro disse não querer retornar mais a terapia, porém não foi possível trabalhar nesta sessão os motivos que o levaram a tomar essa decisão. O pedido de finalização dos atendimentos psicológicos pode ser visto, também, como um ganho pessoal de Pedro, pois posicionar-se e tomar decisões sozinho sempre lhe trouxe dificuldades. Pedro e o terapeuta resolveram juntos chamar Carmem e comunicar a decisão. Carmen já sabia da decisão e disse não concordar, mas não poderia fazer nada. Foi deixada em aberto a possibilidade de retorno à clínica caso exista interesse. Houve também algumas tentativas posteriores de marcação de mais um atendimento para trabalhar a questão do término dos atendimentos, porém Pedro não quis retomar aos atendimentos.
A conclusão deste trabalho possibilitou ao terapeuta, dentre outras coisas despedir-se de Pedro, na certeza de que:
Há algumas coisas […] que independem de teorias. Uma delas é a postura do psicólogo diante de coisas fundamentais, como, por exemplo, o respeito: pelo paciente, pelo contexto da sessão de terapia, pelo segredo profissional; o bom senso de saber que a terapia, seja qual for, não pode tudo […]. (SAPIENZA, 2008, p. 13)
REFERÊNCIAS
CARDINALLI, Ida Elizabeth. As contribuições das noções de ser-no-mundo e temporalidade para a psicoterapia daseinsanalítica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 14, 2005. 80 p.
POMPEIA, João Augusto. Daseinsanalyse e a clínica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 14, 2005. 80 p.
SAPIENZA, Bile Tatit. Conversa sobre terapia. São Paulo: EDUC Paulus, 2008. 160 p.
______. Do desabrigo a confiança: Daseinsanalyse e terapia. São Paulo: Escuta, 2007. 132 p.
SPANOUDIS, Solon. Conhecer o outro na entrevista. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 1, 2 e 4, 1997. 79 p.
[i]Acadêmico do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.
[ii]Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva