Vanessa Cristina Soares Machado[i]
Luiza Angélica Fonseca[ii]

 RESUMO 

A partir do trabalho clínico desenvolvido com pacientes internados em um Centro de Tratamento Intensivo, observou-se que, no momento do adoecimento, o sujeito vê-se desamparado, pois se encontra em situação de total passividade, impossibilitado de resolver com os seus próprios recursos as suas dificuldades, sendo confrontado com a falta que está estampada em seu próprio corpo. O presente artigo propõe-se apresentar a questão do desamparo psíquico relacionado ao adoecimento e à hospitalização. Para tal trabalho, privilegia-se a psicanálise como referencial teórico. 

Palavras-chave: desamparo psíquico, constituição do sujeito, adoecimento, hospitalização, psicanálise.

 

A doença faz com que o sujeito tenha contato com uma realidade que ele não quer enfrentar: o desamparo. A experiência do nascimento e da morte é solitária e, apesar da constituição do sujeito acontecer através da relação com o Outro, o homem lida sozinho com a sua dor, perdas e angústias. 

O desamparo psíquico refere-se ao estado em que o recém-nascido se encontra dependente do Outro para satisfação de suas necessidades por causa de sua imaturidade psíquica e motora. Dessa forma, há um desprovimento de recursos próprios para ajudar-se (ROCHA, 1999, p. 335). 

[…] os perigos do mundo externo têm maior importância para o jovem da espécie humana, de modo que o valor do objeto que pode protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto da vida. (FREUD, 1976, p. 179) 

Nos primeiros meses de vida, a criança vive um conjunto de experiências ritmadas. Quando está com fome apresenta uma descarga motora, chora, grita em busca de alívio de tensão, sendo, então, atendida pelo Outro, que irá suprir as suas necessidades. A criança vivencia a primeira mamada de ordem significativa, que é a experiência de satisfação original. Essa experiência é registrada no aparelho psíquico. A criança vai sempre buscar a repetição dessa satisfação, entretanto não será possível alcançá-la novamente, constituindo-se como ser de falta e, consequentemente, como sujeito desejante. “A criança passa a querer a coisa trazida e aquele que a trouxe.” (ELIA, 2004, p. 52)  

O objeto de desejo é o próprio objeto da Psicanálise e como tal é perdido. Perdido a partir de uma primeira experiência mítica de satisfação, que para Freud é sexual de corpo a corpo entre a mãe e o bebê em que este teria um objeto plenamente satisfatório e que daí por diante não mais o encontraria, senão pelas coordenadas simbólicas desse objeto representadas pelos traços mnêmicos, rastro desse gozo. A partir de então tudo no sujeito tende a buscá-lo e a busca dessa Coisa que foi miticamente perdida Freud dá o nome de desejo. (ANDRADE, 1988, p.13) 

Segundo Rocha (1999, p. 339), na reformulação da teoria freudiana da angústia, Freud aponta a relação da angústia com o desamparo. A angústia originária tornou-se modelo das demais situações de angústia. A angústia-sinal opera como defesa contra a angústia originária do desamparo que se repete nas situações traumáticas, como uma angústia automática. Durante a vida do sujeito, a angústia originária se repete nas várias formas de angústia de separação. 

A angústia originária do nascimento estaria, pois, ligada não à experiência de separação, mas ao estado de desamparo, no qual o recém-nascido vive num estado de total passividade e de incapacidade de poder encontrar em si a ajuda que precisa para responder às suas necessidades fundamentais. (ROCHA, 2000, p. 109) 

Diante do adoecimento, o sujeito se vê numa situação de total passividade, pois não é capaz de, com os seus próprios recursos, tomar atitudes para mudar a sua condição de vida. Está à mercê do saber médico que irá tentar atender as suas necessidades biológicas. Simultaneamente, o sujeito com seus desejos, sonhos e medos é silenciado. Dessa forma, quando o homem entra em contato com os limites que lhes são impostos durante a sua vida, por exemplo no adoecimento e hospitalização, ele vive a angústia do desamparo. “Na urgência, o sujeito é lançado no estado inicial do desamparo, estado que pode repetir-se em qualquer momento da vida, revelando a precariedade da condição humana.” (MOURA, 1996, p.10) 

Assim, duas são as situações que, para Freud, se encontram nas origens da angústia: em primeiro lugar, a situação traumática, cujo modelo, por excelência, é a situação de desamparo, fonte prototípica de toda angústia que acompanha o ser humano pelo resto da vida, e, depois, a situação de perigo, que pode ser externo ou interno que o ego procura controlar. (ROCHA, 2000, p. 131) 

O sujeito está em busca de completude, entretanto no momento do adoecimento é confrontado com a falta que está estampada no seu corpo. O sintoma produz alguns aspectos psicológicos no sujeito, apontando para o desamparo, para a falta e para possibilidade de morte (SARNO; FERNANDES, 2004). Segundo Rocha (1999, p. 336), “o desamparo é constituinte da inserção do sujeito no mundo da linguagem e deixa transparecer essencialmente uma falta fundamental.” 

A experiência que temos de nosso organismo, de suas exigências, proezas, debilidades ou doenças, nós só a temos através do campo da significação, do sentido, ou seja, pelo fato de que, por sermos falantes, somos marcados pela linguagem, pelo significante, mesmo no mais extremo nível de intimidade que possamos estabelecer com nossos órgãos e com nosso corpo. (ELIA, 2004, p. 46) 

A falta faz parte da constituição do sujeito, que sempre tentará supri-la, mas a demanda não corresponderá a sua falta. De acordo com Elia (2004, p. 48), “A falta é fundante do sujeito, mas, em contrapartida, requer o ato do sujeito para se fundar como falta.” 

Num atendimento à senhora D. M. V., hospitalizada no Centro de Tratamento Intensivo em decorrência de cirurgia ortopédica para correção de fratura no fêmur, pôde-se observar a demanda de ser reconhecido que acompanha o sujeito no decorrer de sua vida, como defesa frente ao perigo de desamparo. Senhora D. M. V. relatou durante um atendimento que sofreu quedas durante três segundas-feiras consecutivas. “Na primeira segunda-feira uma mesa de jogos caiu sobre a minha perna, depois na outra, eu fui colocar um lençol no varal e, quando eu joguei o lençol, eu fui junto e cai. Agora, nesta segunda-feira, eu caí de novo e agora estou aqui”. Continuou falando sobre a sua família: “Tive dez filhos. O meu filho mais velho tem 54 anos, há dois anos ele sofreu A.V.C. Hoje, ele está como uma criança. Na semana em que ele adoeceu, ele foi a minha casa e me disse que gostava muito de mim, que se algum dia ele não gostasse de alguém, só de lembrar do amor que ele tinha por mim, ele passaria a gostar dessa pessoa. Disse, também, que, quando pega o ônibus que passa na rua da minha casa, ele sempre se senta do lado que dá para me olhar no jardim da minha casa e caso não tenha lugar disponível desse lado do ônibus, ele prefere viajar em pé, para me ver”. D. M. V. continuou: “Depois que meu filho adoeceu eu sequei. Olhe o meu braço, está igual a um gafanhoto. Semana passada foi aniversário dele. A esposa dele comprou um bolo e ele ficou lá sentado, como uma criança. Queria que você visse como ele era inteligente, todos gostavam dele”.

Após o relato da senhora D. M. V., observa-se a importância que o olhar do filho tinha para essa mãe. Quando o filho retirou o seu olhar, a mãe “caiu”. E oseu corpo “secou”. De acordo com Rocha (1999, p. 336), o sujeito, ao longo de sua vida, irá passar por experiências que terão como modelo a situação originária de desamparo. Além da dependência biológica, o desamparo também significa estar à mercê do desejo do Outro. Senhora D. M. V. sofreu quedas no físico e psíquico, o que a levou ao adoecimento e, consequentemente, à hospitalização. O fato de estar adoecida intensificou a angústia que remeteu à perda do olhar do filho, justamente porque se reportou à experiência de castração e de desamparo.  

Das situações traumatizantes, como dissemos, a situação por excelência é a do desamparo do recém-nascido, que pode ser vitima de uma situação traumatizante, o adulto também o pode, e, quando isto acontece, ele se sente tão desamparado como a criança. O que define o desamparo é a situação de total passividade em que se em encontra o sujeito, na incapacidade de poder, com seus próprios recursos encontrar saída para seus impasses. Somente quando o sujeito (seja ele criança ou adulto) vai, aos poucos, passando do estado de total passividade para o de atividade, é que ele se torna capaz de reconhecer o perigo e de preveni-lo com o sinal de angustia. (ROCHA, 2000, p. 130) 

Diante do que foi exposto, pode-se concluir que mesmo quando o sujeito está acompanhado por familiares e assistido pelo aparato clínico, ele passa pela experiência do adoecimento de modo desamparado. O sujeito encontra-se numa situação de desamparo, pois está carente de recursos psíquicos para lidar com essa experiência frente à castração ressignificada no contexto de hospitalização.

 

REFERÊNCIAS 

ANDRADE, Antonio Luiz Quinet de. O corpo e seus fenômenos. In: Simpósio do Campo Freudiano, 1988, Belo Horizonte: conferência pronunciada no Simpósio do Campo Freudiano, 25 março 1988. 

CARVALHO, Stela Cardoso de. Na angústia do desmame – o surgimento do sujeito. In: MOURA, Marisa Decat (Org.). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter, 1996. P. 91-102.  

ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2004. 80 p. 

FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e angústia. In: ______. Um estudo auto-biográfico, inibições sintomas e Angústia, a questão da análise leiga e outros trabalhos. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V.XX, parte 2, p.107-198. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud)  

MOURA, Marisa Decat. Psicanálise e urgência subjetiva. In: ______ (Org.). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter, 1996. P. 03-19.  

ROCHA, Zeferino. Desamparo e metapsicologia – para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana. Síntese-Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 26, n. 86, p. 331-346, 1999. 

______. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta, 2000. P. 71-162. 

SARNO, Luiza, FERNANDES, Andréa. Psicanálise e Hospital Geral: limites e possibilidades. Cogito, Salvador, v. 6, n. 1, p.151-153, 2004. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792004000100034&lng=pt&nrm=iso>.Acesso em: 04 maio 2008. 


[i] Acadêmica do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

 [ii] Professor supervisor de estágio do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

 

E2-53 Manifestações psíquicas no adoecimento: a experiência de desamparo