Eduardo Alves Guimarães[i]
Geraldo Majela Martins[ii]
RESUMO
Este artigo tem como objetivo comentar a identificação da repetição, termo psicanalitico, num fragmento clínico atendido na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. Serão comentados tanto o caso quanto o conceito da repetição e a sua identificação.
Palavras-chave: Entrevistas Preliminares, Repetição, Transferência, Caso clínico Maria.
O fragmento clínico ao qual se refere este artigo foi trazido à Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. Durante as entrevistas preliminares, Maria revelou que estava passando por problemas conjugais, que era casada há 23 anos, tinha dois filhos dessa relação, sendo um rapaz e uma moça, que fazia trabalhos artesanais, não exercia a profissão para a qual se formara (pedagogia), vivendo integralmente para sua família.
Maria relatou, durante os atendimentos, que seu marido não dialogava com ela, que ela raramente conseguia manter uma conversa com o mesmo, isso ocorrendo também da parte dele com os filhos. Porém, essa situação a incomodava mais pela forma como ele a tratava, ou seja, com os filhos ainda havia um pouco de contato, mas com ela isso nunca ocorria. Segundo ela, essa situação vinha se arrastando desde o casamento dos dois, mas agora ela não suportava mais.
No decorrer da entrevista, foram mencionados alguns fragmentos, os quais abordaremos no decorrer deste trabalho, que puderam caracterizar a repetição existente na vida de Maria.
Mas, voltando aos relatos de Maria durante as entrevistas preliminares, Maria disse se sentir angustiada e ter sofrido três ataques que a levaram a ser atendida em hospitais. Ela disse que sentia taquicardia, palpitações, desmaio, mas que seus exames clínicos não acusaram qualquer alteração física.
Diante da situação de tristeza e apatia de Maria, transparente para seus filhos, ela resolveu procurar então a Clínica de Psicologia por indicação da sua filha. Ela disse que a filha não suportava mais vê-la tão triste e sem vida, como vinha ocorrendo nos últimos dias.
Maria relatou também que seus dois filhos estavam com casamento marcado, o que, segundo ela, não tinha problema algum em acontecer, pois isso acabaria acontecendo mais cedo ou mais tarde (sic).
Antes de passarmos para a articulação da repetição com o caso de Maria, faz-se necessário esclarecermos a repetição dentro da abordagem psicanalítica, o que tornará mais claro o entendimento do estudo desse caso.
A palavra repetição origina-se do latim repetere, que significa “fazer ou dizer de novo”, de re-, “outra vez”. mais petere “procurar, demandar, atacar”. Tem ainda a derivação também do latim repetitione, declinação de repettio, repetição, do mesmo étimo de petere, atacar. Repetir designou originalmente atacar de novo. Nos pedidos de repetição em shows, pede-se bis, do latim bis. De acordo com GREGORIM (2001), repetição é um substantivo feminino que significa reprodução, repetência. Consta ainda o termo muito utilizado em inglês “replay”, utilizado em informática, significando recurso em que um caractere é repetido automaticamente enquanto a tecla estiver sendo pressionada.
No contexto psicanalítico, conforme ROUDINESCO (1998), a compulsão à repetição provém do campo pulsional, do qual possui o caráter de uma insistência conservadora.
(…) em Mais além do princípio do prazer, Sigmond Freud relacionou desde muito cedo as idéias de compulsão (Zwang) e repetição (Wiederholung) para dar conta de um processo inconsciente e, como tal, impossível de dominar, que obriga o sujeito a reproduzir sequências (atos, idéias, pensamentos ou sonhos) que, em sua origem, foram geradoras de sofrimento, e que conservaram esse caráter doloroso (ROUDINESCO, 1998, p. 656).
Na doutrina freudiana, a ideia de repetição refere-se a uma das dimensões que deram origem à noção de inconsciente.
Freud (1893) defrontou-se com a repetição durante o tratamento da jovem Dora. Esse fato novo desempenhou um papel importantíssimo na teoria e na técnica psicanalítica.
Enquanto estava preocupado com a recordação dos acontecimentos passados do paciente, este desenvolvia um outro mecanismo, não tão evidente mas igualmente importante, de cujo significado e alcance Freud sequer suspeitava: ‘O paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o sem, naturalmente, saber que o está repetindo’ (GARCIA-ROZA, 1986, p.22).
A repetição teve sua importância a partir de 1893, quando Freud e Josef Breuer fizeram uma abordagem sobre a histeria. Eles, ao falarem da rememoração de um sofrimento moral ligado a um antigo trauma, chegaram à célebre conclusão de que É sobretudo de reminiscências que sofre a histérica (FREUD, 1893).
Para o psicanalista,
(…) a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atua (FREUD, 1914, p. 197).
Com dificuldades de ligar a neurose obsessiva à sexualidade, Freud utiliza o termo compulsão em 1894 através de uma carta a Wilhelm Fliess, em que ele, a fim de ilustrar sua colocação, evoca um caso clínico no qual aborda a “micção compulsiva”.
Mais tarde, Freud (1914) dirá que,
Devemos estar preparados para descobrir, portanto, que o paciente submete-se à compulsão à repetição, que agora substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento que podem ocupar sua vida na ocasião – se, por exemplo, se enamora, incumbe-se de uma tarefa ou inicia um empreendimento durante o tratamento (FREUD, 1914, p. 197).
Conforme ROUDINESCO (1998), Freud, em seu “Projeto para uma psicologia científica”, desenvolveu a ideia de facilitação, na qual podemos discernir a prefiguração da compulsão à repetição. Para a psicanalista francesa,
algumas quantidades de energia conseguem transpor as barreiras de contato, com isso ocasionando uma dor, mas também abrindo uma passagem que tenderá a se tornar permanente e, como tal, fonte de prazer, apesar da dor sistematicamente reavivada (ROUDINESCO, 1998, p. 657).
É importante mencionar que a ideia de repetição, passível de ser assimilada à do destino, foi contemporânea da descoberta do Édipo. Isso foi tratado por Freud em uma carta datada de 15 de outubro de 1897, na qual constava
Encontrei em mim, como em toda parte, sentimentos amorosos em relação à minha mãe e de ciúme a respeito de meu pai, sentimentos estes que, penso eu, são comuns a todas as crianças pequenas (ROUDINESCO, 1998, p. 657).
Ainda nessa mesma carta, Freud complementa seu pensamento afirmando que
Se realmente é assim é compreensível, a despeito de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito cativante de Édipo rei (…). A lenda grega apoderou-se de uma compulsão que todos reconhecem, porque todos a sentiram” (ROUDINESCO, 1998, p. 656).
Foi então em 1914 que Freud começou a fazer um estudo autônomo sobre a repetição. Ele identificou a permanência dessa compulsão à repetição, a qual estaria ligada à transferência, mas que não constituiria a totalidade da mesma. Para Freud,
Se a ligação através da transferência transformou-se em algo de modo algum utilizável, o tratamento é capaz de impedir o paciente de executar algumas das ações repetitivas mais importantes e utilizar sua intenção de assim proceder, in statu nascendi, como material para o trabalho terapêutico (FREUD, 1914, p. 200).
No do texto “Recordar, repetir, elaborar” (Freud, 1914), a repetição recebe uma definição bem clara ao ser colocada como
Ela é uma maneira de o paciente se lembrar, maneira ainda mais insistente na medida em que ele resiste a uma rememoração cuja conotação sexual lhe desperta vergonha (ROUDINESCO, 1998, p. 656).
Ainda em “Recordar, repetir, elaborar” (Freud, 1914), Freud escreveu que é no manejo da transferência que encontramos o principal meio de barrar a compulsão à repetição e transformá-la numa razão para lembrar.
No manejo da transferência, a compulsão se torna insignificante ou mesmo útil, podendo a mesma manifestar-se com liberdade, revelando-nos tudo o que se dissimula de patogênico no psiquismo do sujeito.
Jaques Lacan (1992) fez da repetição um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Ele observou que
a repetição inconsciente nunca é uma repetição no sentido habitual de reprodução do idêntico: a repetição é o movimento, ou melhor, a pulsação que subjaz à busca de uma objeto, de uma coisa (das Ding) sempre situada além desta ou daquela coisa particular e, por isso mesmo, impossível de atingir (ROUDINESCO, 1998, p. 658).
Lacan (1992) distingue duas ordens de repetição. Uma sendo dominada pelo acaso e outra que ocorre no momento oportuno. Este tipo de repetição que ocorre no momento opurtuno pode ser assimilado ao trauma, ou seja, ao choque imprevisível e incontrolável.
Segundo Garcia-Roza (1986), Lacan critica a afirmação de que a transferência é uma repetição, pois mesmo estando presente na transferência, os conceitos são distintos, ou seja, se na transferência dá-se uma repetição de protótipos infantis, essa mesma repetição não seria uma reprodução de situações reais vividas pelo paciente, mas sim equivalentes simbólicos do desejo inconsciente. Garcia-Roza dirá que:
O que se repete , faz-se num ato que só toma sentido em relação a analista, o que implicaria, pelo menos, que fizéssemos uma distinção entre repetição do mesmo e repetição diferencial. Se transferência é repetição, ela é uma repetição diferencial, e somente sob este aspecto a repetição toma um sentido positivo e pode constituir-se como um instrumento no sentido da cura (GARCIA-ROZA, 1986, p. 23).
De acordo com Roudinesco (1998), a repetição só pode ser simbolizada, esvaziada ou domesticada através da fala, e sua repetição traduz a busca dessa simbolização.
Ainda segundo Roudinesco (1998), se esta repetição permite escapar à lembrança do trauma, ela só pode consumar-se ao revivê-lo ininterruptamente, como um pesadelo, na fantasia ou no sonho.
Após esclarecermos a repetição, passemos então a articular a mesma com o caso de Maria.
Maria, durante os atendimentos, relata que há algum tempo, mais precisamente passados 12 anos, havia sido acometida de depressão, o que a levou a submeter-se a tratamento psiquiátrico, sendo inclusive medicada durante quase três anos.
Perguntada sobre o que ocorreu nessa época, Maria revela que foi quando sua mãe havia morrido, levando-a a este estado de sofrimento psíquico por não conseguir elaborar a perda da mãe.
Podemos identificar aqui uma repetição ocorrendo em Maria, que, da mesma forma que não suportou a morte de sua mãe há doze anos, sofre agora novamente com a perda da mãe sendo manifestada diante da eminência da perda de seus dois filhos que estão com casamento marcado. A perda da mãe, no caso, seria ela não ter mais os filhos e perder a maternidade.
Maria relatou durante as entrevistas que as coisas mais importantes em sua vida são os seus filhos. Ela, inconscientemente, teme a perda dos filhos e faz disso a última coisa em que quer pensar. Ela chega, inclusive, a numerar a ordem de importância em sua vida, sendo a primeira coisa mais importante os filhos, a segunda coisa a família e, por último, as demais coisas.
Em outra situação relatada por Maria também se pode perceber a repetição se manifestando. Maria relatou que sempre foi muito organizada, perfeccionista e controladora. Segundo ela, isso causava incômodo em seus filhos e em seu marido. Ela disse que seus filhos chegaram inclusive a chamá-la de chata e de controladora. Mas, ao ser questionada pelo estagiário sobre ser ou não controladora e como se submeteria diante de um controle, Maria se diz inconformada com o fato de ser controlada. Ela relatou que sua mãe era muito controladora e organizada, tentando impor a ela várias vezes esse controle exagerado, fazendo com que ela “batesse de frente com sua mãe por isso” (sic).
A forma de agir e de controlar é mais uma manifestação da repetição em Maria que, tal como sua mãe, mostra-se controladora e organizada ao extremo. Ela relatou que chegou até mesmo ao ponto de organizar o casamento de seu filho, bem como resolver tudo na vida tanto dos filhos como na vida do marido.
A manifestação da repetição é bastante comum em atendimentos clínicos. Conforme foi exposto acima, a repetição, um dos quatro conceitos fundamentais na psicanálise, facilitará o trabalho do psicanalista durante os atendimentos nos quais o cliente, através da associação livre, trouxer para o analista esses relatos.
Importante também é lembrar que a repetição na transferência é também alusão a algo que não se consegue mais, podendo ser tanto um objeto quanto uma satisfação pela qual o sujeito procura e procurará durante toda a sua vida.
Sendo assim, esses dois termos, Transferência e repetição, estiveram e sempre estarão presentes em estudos, discussões e, principalmente, nos atendimentos psicanalíticos, pois a repetição através da transferência é uma outra forma de se lembrar.
REFERÊNCIAS
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GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
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NEIVA, Edméa Garcia; CARVALHO, Sandra Helena Terciotti. Michaelis Dicionário Prático da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2001.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 766-770.
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