Maria Andréia Alves Leandro[i]
A criança, ao nascer, é atribuído um nome, traço de sua presença única, que lhe é conferido pelo lugar que a mesma ocupa no desejo do par parental. Essa criança cresce e, consequentemente, é encaminhada à escola, na qual ela terá “a-cessos” ao social, que possui interesses bem diferentes da família de sua origem. Diante dessa entrada na escola, a criança pode manifestar dificuldades escolares por não conseguir fazer a separação familiar. Ela pode viver um certo desamparo por se frustrar diante da tentativa de reviver a ilusão de completude no ambiente escolar. Ao ficar na escola, a criança perde o colo da mãe, o bico e a fralda e, neste momento, para ela fica atualizada a falta que irá lhe permitir a busca pelo objeto de desejo. Por isso, a condição da psicanálise não é o ideal e, sim, o desejo. O desejo se realiza, mas não se satisfaz. Quando se faz algo baseado no desejo, são cabíveis realizações no possível e dentro da realidade.
A escola é o Outro social e entra como um terceiro na vida da criança. Ao fazer a escansão da palavra “’es-cola”, podemos escutar como uma separação do grupo familiar. Sendo assim, a escola introduz na vida da criança uma outra linguagem, que não mais a materna.
Para ilustrar o que foi citado acima, será apresentada uma vinheta de um caso clínico referente a uma criança, que foi trazida pela mãe à Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. Na entrevista de acolhimento, a queixa inicial é de que a criança estava abaixo do peso, não comia a comida feita pela mãe, entre outras.
Já na sessão seguinte, em entrevista com a mãe, esta relata que sua real preocupação é que a criança tem apresentado muita dificuldade na escola, pois a professora observou que ela tem uma “escrita fina”, insegura, pega no lápis com dificuldade e produz desenhos muito pobres, porém ela não entendia o porquê, já que ela percebe a criança como muito esperta, que fala bem e tem muitos amiguinhos.
Durante as sessões, a criança não demonstrou nenhuma dificuldade em escrever, desenhar, mesmo estando em fase de alfabetização na pré-escola. Em seus desenhos, sempre gostou de desenhar a família, porém, no desenho de sua mãe, esta sempre tinha os olhos bem grandes e sempre era a maior, ficando a criança em questão, seu irmão e o pai menores e do mesmo tamanho. Em relação às brincadeiras, a criança sempre ocupava o lugar ora de professora, ora de mãe.
Já a queixa da criança era de que em sua casa ela não podia atender ao telefone, porque ela era pequena, sendo esse fato motivo de muitas brigas entre ela e o irmão mais velho. Diante dessa queixa apresentada pela criança, na sessão seguinte foi colocado um telefone de brinquedo para que ela falasse à vontade com quem quisesse.
O telefone de brinquedo passou a ser uma peça fundamental no tratamento. A criança, várias vezes durante a sessão, interrompia o que estava fazendo no momento e dizia; “Oh! O telefone está tocando”. Ela simulava que estava surpresa e alegremente saia correndo para atendê-lo, porém, ao falar ao telefone, muitas vezes quem atendia era o amigo do pai, com quem ela deixava recado de forma autoritária, dizendo que queria falar com ele. Mas os recados deixados eram dados como se fossem pela mãe.
Durante as sessões, a criança fantasiava muito, porém houve um dia em que ela disse: “Ai, meu Deus, o telefone não pára de tocar. É você, pai? Tenho uma coisa prá te dizer. Um dia sua filha chorou na escola e você não viu. Ela não é aluna deste prédio, ela é do outro grande. “Tenho o que dizer e posso ser escutada, eu já sou grande, tá?” Neste momento, ela pegou a tesoura com que estava brincando e cortou o fio do telefone.
Considerando esta vinheta, vários pontos poderiam ser ressaltados, porém não interpretados, como nos diz Tânia Ferreira (1999, p. 107), que “não se trata, portanto, na clínica, de interpretar o brincar, mas fazer surgir a enunciação velada no enunciado sobre o brincar”. No entanto, dar-se-à ênfase ao fato de que esta criança tem algo a dizer/ouvir deste pai. E, esta foi a forma que ela encontrou para se fazer ouvir do outro lado da linha telefônica. Ao invés de continuar a falar, ela atuou, e este ato foi endereçado a este pai. Tal comportamento foi uma forma de linguagem. A todo momento ela chama e pede este pai, ela o convoca a ocupar um lugar, e, ao não ocupar este lugar, ele pode estar se protegendo da criança que nele habita e à qual ele não mais tem acesso.
Ao brincar e por meio do acesso ao telefone, aparelho da demanda e da linguagem, operou-se uma separação da criança ao seu Outro materno. Foi por meio do telefone que ela pôde falar e convocar o pai.
Freud já notara, em 1908, que a ocupação predileta e mais intensa das crianças é o brinquedo ou os jogos, e que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio de uma nova forma que lhe dê prazer. Seguindo, ele também afirma que a criança leva muito a sério a sua brincadeira e dispensa na mesma muita emoção. Destaca, ainda, que o contrário de brincar não é o que é sério, mas o que é real, assim nos diz: “apesar de toda emoção com que a criança brinca, ela distingue perfeitamente seu mundo de brinquedo da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real”. (FREUD, 1908, p. 150).
Sabe-se que as crianças, em suas brincadeiras, repetem experiências que lhes causaram grande impressão na vida real, “e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se por assim dizer, senhoras da situação” (FREUD). Podemos dizer então que, nesse momento, as crianças passam de uma situação passiva para uma situação ativa, ou seja, elas partem de uma experiência desagradável, buscando em seu jogo, uma fonte de prazer.
Isso não significa que todas as experiências desagradáveis na vida da criança dão origem a brincadeiras; mas, sem dúvida, comprova a importância do brincar para elas, que podem encontrar no brinquedo um apoio para suportar as perdas inevitáveis que a realidade lhes impõe.
No entanto, na idade pré-escolar, quando surgem várias tendências e desejos que não podem ser realizados de imediato ou esquecidos, e ainda permanecendo a característica do estágio precedente da tendência para a satisfação imediata, o comportamento da criança se modifica. Nesse caso, para resolver essa tensão, a criança se envolve num mundo imaginário e fantasioso, no qual os desejos não realizáveis podem se realizar, esse mundo é o mundo do brinquedo. E isso é extremamente importante para as crianças, pois é uma via de acesso ao simbólico, já que a realidade lhe apresenta como insatisfatória.
Mas a criança não brinca apenas para satisfazer suas vontades e desejos insatisfeitos. Além disso, há que considerar que ela também brinca para manter seus desejos. Assim, o que determina as brincadeiras das crianças são os seus próprios desejos e segundo Freud (1908), um único desejo – que auxilia em seu desenvolvimento – o desejo de ser grande e adulto, a criança sempre brinca de ser adulto e emita em seus jogos aquilo que conhece dos mais velhos.
O brincar é um recurso característico das crianças e está presente em suas vidas desde muito cedo. O brincar é uma atividade universal, que se encontra desde as mais primitivas até as mais sofisticadas formas de organização social.
Durante muito tempo, pensou-se que a psicanálise não fosse aplicável às crianças, por se tratar de um saber e uma experiência clínica fundada no campo da fala e da linguagem. Embora o objeto da psicanálise seja o sujeito do inconsciente, que nada tem a ver com a idade, não há como negar que a clínica psicanalítica com crianças revela distinções em relação á clínica com adultos. Segundo Santa Roza (1993, p. 16), “é evidente que nenhum psicanalista pode esperar de uma criança que ela se deite num divã e fale por trinta ou cinqüenta minutos, em sessões contínuas, por meses a fio, sobre sua vida”. Se essa atitude for imposta como regra, a criança pode se recusar a comparecer às sessões.
Freud nos convida, por meio da psicanálise, a rever o infantil, porque esse está ligado às nossas fantasias. E, justamente pela tendência de considerarmos a criança como algo inacabado, que a criança não sofre, não é corrompida pelos adultos e vive num mundo imaginário e feliz, é que muitos pais buscam nos medicamentos uma forma de silenciar/apaziguar o quê não vai nada bem. Em contrapartida, e, na contramão de todo tipo de classificação, por considerar que o sujeito dela escapa, cabe ao analista a priori, perguntar para a criança o que não vai bem em sua vida. Por meio dessa simples pergunta, o analista abre espaço e aposta que, a partir desse momento, possa advir o sujeito e seu saber.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Tânia. A Escrita da Clínica: Psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 136p.
FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneios. In: Gradiva de Jensen e Outros Trabalhos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Imago (1908) 1996, p. 133-150. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
ROZA, Elisa Santa. Quando o brincar é dizer: A experiência Psicanalítica na Infância. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993. 126p.
NOTAS DE RODAPÉ
[i] Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Maxleila Reis.