“Não há filhos ilegítimos, só há pais ilegítimos.”

(Leon Rene Yankwich) 

Aline Ladeira de Carvalho[i]

 

Este artigo tem por finalidade investigar, definir, conceituar e diferenciar a visão de pai existente no Direito, da visão que é adotada pela Psicanálise. Buscou-se, assim, articular a abordagem dada ao assunto por essas duas ciências, empreendendo um resgate histórico do instituto do pátrio poder, seu conceito no mundo jus e psi.

Novas configurações e rearranjos estão ocorrendo no interior das novas famílias. Se até pouco tempo atrás, o padrão familiar, o modelo a ser seguido, era o de uma família nuclear, composta pelo pai, mãe e filhos, atualmente, nos deparamos com uma gama extensa de novas configurações familiares. As famílias reconstituídas, nas quais um novo casal é formado, em que apenas um deles já tenha passado por um casamento anterior, são famílias comuns em nossos dias; algumas formadas pessoas solitárias, do mesmo sexo ou governadas só por mulheres.

Diante dessas novas mudanças e de outros modelos familiares, surge uma questão: quem é o pai e qual o lugar que ocupa nessas famílias? 

A palavra Pater – a mesma no grego e no latim, indicava um título ou paterfamilias, que podia ser conferido ao homem que não tivesse prole, nem fosse casado, nem tivesse idade para contrair núpcias. A concepção de paternidade não estava relacionada a tal palavra, mas a genitor, gânitar; ao passo que na linguagem religiosa aplicava-se a expressão a todos os deuses; a todo homem que não dependesse do outro paterfamilias. Os poetas usavam-na aleatoriamente para todos os quais desejavam honrar. O Escravo e o seu cliente utilizavam-na para com o seu senhor, de modo que a palavra encerrava em si, não o conceito de paternidade, mas o poder de autoridade (COULANGES, 1981).

Inúmeras teorias tentaram explicar a origem remota do instituto do pátrio poder. Originalmente, fundou-se no culto dos antepassados. Para os teóricos dessa vertente, o poder paternal teve por princípio e condição o culto doméstico. Ihering dizia que o intento de referida prática era para apaziguar-lhe os espíritos (MONTEIRO, 1996) .

No Brasil, a expressão jurídica do pai de família foi incorporada no direito positivo brasileiro com o Código Civil de 1916, no Livro I, Titulo V, capitulo VI.  Segundo Lôbo (1993), o instituto do pátrio poder nada mais é do que um complexo de direitos e deveres concernentes aos pais, baseado no Direito Natural, confirmado pelo direito positivo e direcionado ao interesse da família e do filho menor não emancipado, que recai sobre a pessoa e o patrimônio deste filho e serve como meio para mantê-lo, protegê-lo e educá-lo.

Com o advento do novo Código Civil, instituído pela lei 10.406 de 2002, a terminologia pátrio poder passou a ser denominada como poder familiar, que, para muitos juristas, ainda não é a mais adequada, pois mantém a ênfase no poder, na idéia de dominação. Doutrinadores defendem a expressão autoridade parental, a qual encontra-se nas legislações francesa e norte-americana (PERES, 2002).

O poder familiar dos pais é um ônus que a sociedade a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade no interesse dos filhos. O referido exercício não é livre, mas necessário no interesse de outrem. Para Perlingieri (1997, p. 129 ) “um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever; como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los”.

Diversamente da paternidade, para o Direito, a maternidade é sempre certa, revelando-se por sinais exteriores inequívocos. Normalmente, consta do registro de nascimento.

Assim, a maternidade é um fato (mater semper certa est) ao passo que a paternidade, devido a sua natureza oculta, é presunção (pater autem incertus), isto é, o filho concebido na constância do matrimônio é reputado ter por pai o marido de sua mãe, daí a máxima latina “ pater est quem demonstrant” (MONTEIRO, 1996).

Logo, a filiação matrimonial se estabelece pelo reconhecimento ou presunção legal pater is est. No tocante aos filhos fora do casamento, a regra é da não incidência tout court da presunção de paternidade, pois nela a paternidade advém ou do reconhecimento espontâneo, ou forçado via ação investigatória (MONTEIRO, 1996).

Desse modo, a filiação passa a se estabelecer por um ato de nomeação, feita a partir do patronímico, que confere à criança uma identidade. O pai encontra-se, portanto, apto a transmitir, por meio da sua palavra, o significante[ii] que interdita (inter-dita) o gozo, colocando-se entre a mãe e o filho (BARROS, 1999).

Enquanto o Direito adota uma postura biologizante e objetiva, no campo psicanalítico, a noção de pai é investida de uma conotação bem particular. A Psicanálise define o pai não como sendo aquele que é de fato e por direito, mas como aquele que exerce uma função. Para essa ciência, a verdadeira paternidade só é viável a partir de um ato de vontade, marcado pelo desejo. Assim, existe uma possibilidade de coincidir, ou não, com o elemento biológico. A essa função dá-se o nome de função paterna ou função simbólica, uma vez que é exercida por um pai determinante e estruturante do sujeito.

O “Nome-do-Pai” nada mais é do que esse significante que representa o pai simbólico, capaz de produzir um esvaziamento de gozo, assinalando o Outro com a lei, possibilitando ao sujeito o campo do desejo. A partir de então, a criança passa a reconhecer a lei onde quer que se apresente. Ao submeter-se à lei do significante “Nome-do-Pai”, torna-se cidadã da ordem social, segue a Constituição, suporta a censura em meio à ordenação própria da propagação que na linguagem se opera, diante da transmissão da metáfora paterna (BARROS, 1999).

Dessa forma, o pai é um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno, fazendo com que a criança aceda à linguagem e possa fazer uso de metáforas e metonímias. “É na medida em que o pai substitui a mãe como significante que vem a se produzir o resultado comum da metáfora” (LACAN, 1913 [1914], p.181)

Essa função do pai, o “Nome-do-Pai”, por ligar-se à proibição do incesto, torna-se uma barreira entre mãe e filho, e por ser o pai, o portador da lei, investido pelo significante do pai, sua intervenção no complexo de Édipo se dá de modo mais concreto (LACAN 1913 [1914]). O interdito é o não que o pai sustenta dirigido à mãe e à criança, respectivamente: “Não recolocarás a criança em teu ventre”! “Não deitarás com tua mãe!”

A partir dessa ordenação paterna, a criança entra em um universo onde impera a fala e que submete o desejo de cada um à lei do desejo do Outro, isto é, à civilização (BARROS, 1999).

Portanto, a função paterna ocupa um lugar importante na história do sujeito, lugar de um vetor, de um orientador.  Afinal, quando esse pai não se torna o portador da lei, proibindo o objeto que é a mãe, pode a criança desenvolver não só fobias e outros sintomas, como também uma psicose.

A voz do pai desaloja o filho do corpo biológico, abrindo caminho para a vida simbólica. Iniciar um indivíduo na cultura é educá-lo, moldá-lo, limitá-lo e, simultaneamente, provê-lo de valores, costumes e de uma história que o individualiza e o articula ao social. A voz que o chama e o nomeia, livra-o do seu corpo objeto, identificado com o que se vê (THIS, 1987).

Enfim, a função paterna atua como catalisadora do processo de conexão entre o sujeito e o coletivo, sendo a representante da cultura na qual o indivíduo deva ser inserido, trazendo a lei onde se lê a interdição. Enquanto a cultura fornece a baliza para o controle dos homens e para que ela mesma se mantenha, a função paterna determina o emolduramento do homem para que a cultura se reproduza (MONTEIRO, 2001).

Nesse sentido, Lacan explica que as funções da mãe e do pai não se resumem às satisfações das necessidades, mas na transmissão de uma constituição subjetiva, implicando em um desejo que não seja anônimo. Por isso se diz que o pai é sempre incerto, pois sua lei precisa ser efetivamente adotada pela criança.

Só assim, ocupando um lugar no desejo do Outro, a criança poderá constituir-se enquanto ser desejante.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Fernanda Ottoni de. Do direito ao pai: sobre a paternidade no ordenamento jurídico. 1999. 111 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999.

 

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de: LEITE, Jonas Camargo, FONSECA Eduardo. São Paulo: Hemus, 1981, 310 p.

 

LACAN, Jacques. Duas Notas sobre a criança ( 1969). In: _____. Opção lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Tradução de. Ana Lygia Santiago. São Paulo: Eólio, 1998

 

LACAN, Jacques. A Metáfora Paterna. In:_____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1953-1954). Tradução de: RIBEIRO, Vera. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, cap.IX, p. 166 -184.

 

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do Poder Familiar. In: DIAS, Maria Berenice, PEREIRA, Rodrigo da Cunha ( Orgs. ). Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, cap. 7, p. 141-153

 

MONTEIRO, Washington de Barros. Do Pátrio Poder. In: ______. Curso de direito civil: direito de família. 33ed. São Paulo: Saraiva, 1996, cap XXXI, p 282-294

 

PERES, Luis Felipe Lyrio. Guarda compartilhada. Disponível em: <http:// jus2.UOL.com.br/doutrina/texto.asp?id=3533 >. Acesso em 25 de agos.  2008

 

THIS, Bernard O Pai: ato de nascimento. Tradução de Mário Fleig e Luis Carlos Petry. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. 250 p.

 

NOTAS DE RODAPÉ



[i]Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Inês Maria Seabra de Abreu.

 

[ii]expressãointroduzida na Psicanálise por Lacan, que buscou em Saussure  a sua idéia. Para Lacan (1975) o significante é o que representa um sujeito perante outro significante

E1-21 UM OLHAR SOBRE A PATERNIDADE NO DIREITO E NA PSICANÁLISE

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