Em ti mais do que tu
Eu te amo,
Mas, porque inexplicavelmente
Amo em ti algo
Mais do que tu-
O objeto a minúsculo,
Eu te mutilo
(Jacques Lacan)
Alessandra Canduro Figueiredo[i]
O escopo deste estudo é analisar, a partir de um caso clínico, a transferência amorosa como reconhecida força-motriz para a viabilidade da psicoterapia e as dificuldades enfrentadas pelo analista em manter-se “apenas” na condição de semblante, sem deixar-se capturar por ele.
Em suas primeiras formulações sobre a transferência, Freud (1912) pontua que apenas uma parte dos impulsos da vida erótica, construída durante os primeiros anos de vida, passa por todo o processo de desenvolvimento psíquico. Afirma que
Esta parte está dirigida para a realidade, acha-se à disposição da personalidade consciente e faz parte dela. Outra parte dos impulsos libidinais foi retida no curso do desenvolvimento; mantiveram-na afastada da personalidade consciente e da realidade, e, ou foi impedida de expulsão ulterior, exceto na fantasia, ou permaneceu totalmente no inconsciente, de maneira que é desconhecida pela consciência da personalidade. (FREUD, 1996[1912], p.112)
Assim, a libido (inteiramente ou em parte) entra num curso regressivo e revive as imagos infantis do indivíduo com o outro. Este fenômeno é a transferência. A transferência positiva divide-se em sentimentos amistosos ou afetuosos (são admissíveis à consciência) e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente (remontam a fontes eróticas). Cada conflito que surge nessa situação possibilita ao sujeito a lutar no presente com suas dificuldades relacionadas a importantes relações objetais do passado. Para Freud:
[…] somos assim levados à descoberta de que todas as relações emocionais de simpatia, amizade, confiança e similares, das quais podemos tirar bom proveito em nossas vidas, acham-se geneticamente vinculadas à sexualidade e se desenvolveram a partir de desejos puramente sexuais, através da suavização de seu objetivo sexual, por mais puros e não sensuais que possam parecer à nossa autopercepção consciente. (FREUD, 1996[1912], p.116)
Freud (1914) comenta que a transferência é apenas um fragmento da repetição. Essa repetição é uma transferência do passado esquecido, que se manifesta em todas as diferentes atividades e relacionamentos do indivíduo, percorrendo caminhos familiares e despertando lembranças. No processo analítico, a transferência concerne ao sujeito e ao desejo do psicanalista.
O mesmo autor ainda discorre sobre os aspectos aflitivos, cômicos e sérios que pacientes demonstram, mediante indicações inequívocas ou declarando abertamente que se enamoraram do médico que as está analisando. Porém o analista deve compreender que esta apaixonada exigência de amor (que ele evocou) nada tem a ver com ele, enquanto pessoa.
Ele deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria chamada fora de análise. (FREUD, (1915[1914]), p.178).
A irrupção de uma apaixonada exigência de amor é também expressão da resistência, fazendo com que o paciente não faça mais insights, ficando absorvido em seu amor. Este processo ocorre quando se tenta recordar um fragmento particular aflitivo ou recalcado, mas agora a resistência está começando a utilizar seu amor a fim de estorvar a continuação do tratamento e colocando o analista em posição canhestra. (Freud, (1915[1914]), p.180).
No manejo da transferência, há retribuição dos sentimentos amorosos do paciente, mas evitando qualquer complementação física desta afeição, negando-se a satisfação deste amor e baseando-se em seu efeito educativo e ético. Porém, na prática, esse distanciamento, eventualmente, pode não se dar de maneira tão silenciosa.
Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência. (FREUD, (1915[1914]), p.182).
O terapeuta ainda deve tratar este amor como algo irreal, como uma característica analítica, da qual se deve tirar proveito para ajudar a trazer à tona tudo o que se ache profundamente recalcado na vida erótica, isto é, inconsciente, não perceptível ao paciente. Ao analisando, falta-lhe grau de consideração com a realidade, reduzida sensatez, pouco interesse em relação às conseqüências e crença que será recompensado pelo médico por esse dispêndio amoroso.
No caso a ser relatado, a paciente esteve em tratamento por seis meses, demonstrando progressiva melhora em vários aspectos. Ela fazia questão de “presentear-me” com mudanças subjetivas e comportamentais, salientando que essas foram realizadas graças “à minha competência”. A experiência analítica nos mostra que é de ver funcionar toda uma cadeia no nível do desejo do Outro que o desejo do sujeito se constitui (Lacan, 1962, p.223). No início do tratamento, ela apresentava-se trêmula, com sudorese, acanhada, tímida, com dificuldades para algumas verbalizações e contato visual. Com a transferência, que mais tarde mostrou-se erotizada, a analisante parou de tremer, encarando-me, discorrendo sobre sonhos que teve comigo, “os quais não poderia contar-me”, sobre meu andar, postura, maneira de cruzar as mãos, comprimento dos cabelos e outras manifestações erotomizadas, além de presentes. Se no início do tratamento havia um porão de imagens, esse evoluiu para um porão de linguagem, fazendo do inconsciente o depósito.
Lacan (1964) argumenta que o analisante infere do analista que esse sabe das coisas, colocando-o na posição de Sujeito Suposto Saber, ou seja, o analisante coloca o analista no lugar de objeto pequeno a, fantasiando sua completude. Porém, nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (Lacan, 1964, p.220). Cabe ao profissional fazer semblante de objeto a, mas não colocar-se neste lugar e acreditar.
Assim como a criança que entrega sua produção concretizada nas fezes para a mãe, numa clara satisfação pela alteridade, aceitação, controle e demanda amorosa, a paciente fazia progressos, que eram descarregados e comprovados por ela a cada nova sessão. Certamente, todo o progresso conquistado só foi possível pelo desejo na produção de saber desta pessoa, numa procura impiedosa por respostas neste processo doloroso e laborioso, mas construtor até seu inconsciente fechar-se. Ele retém certos elementos para que o analista não vá muito depressa. (Lacan, 1964, p.221).
Desejar comporta uma fase de defesa que o torna idêntico a não querer desejar. Não querer desejar é querer não desejar (…). O sujeito sabe que não querer desejar tem em si algo tão irrefutável quanto essa banda de Moebius que não tem avesso, isto é, que ao percorrê-la se retornará matematicamente à superfície que supostamente a duplicaria. (LACAN, 1964, p.222).
O analista não deve perder de vista que é um parasita, ficando no lugar do Outro, não se apresentando enquanto pessoa, mas como um Significante vazio. Assim, as libidos do paciente são deslocadas para a figura do analista, que não deve se colocar como pessoa e, sim, como objeto a. A alavanca para o tratamento analítico é a transferência positiva e é de extrema relevância o manejo desta para que não se transforme em transferência negativa ou erotizada, em que há a implicância, a demanda de uma relação amorosa.
Neste relato, o manejo da transferência foi bem sucedido até a falha em se fazer o semblante, assumindo-o enquanto pessoa. Miller (1988), ao falar de amor comenta:
O grande problema é que, quando a gente vê as coisas de perto, não se consegue diferenciar esse amor de transferência do verdadeiro amor. Não se consegue muito bem considerá-lo inautêntico. Pois esse amor de transferência é uma repetição estereotipada das condutas inscritas no sujeito, dispostas a ressurgir quando se lhes dá ocasião, isso é certo para todo amor. Não existe, diz Freud, amor que não tenha seu protótipo na infância. Dito de outra forma, esse amor é tão verdadeiro quanto o outro. (MILLER, 1988, p. 66.).
Assim, o que persiste, insiste e resiste é o desejo, o qual enaltece o quanto o sujeito é dividido, fragmentado. Na realidade, a analisante em questão fechou seu inconsciente numa característica da resistência, demandando amor de seu terapeuta; este foi fisgado, saindo do Significante e assumindo o Real, mostrando-se como sujeito também dividido. Nesse processo, passaram a coexistir no pequeno consultório dois sujeitos, ao invés de um. O terapeuta mostrou-se tão mutilado quanto o sujeito. Ponto de basta. Algo do insuportável surgiu. Análise interrompida. Como já dizia Francisco Buarque de Holanda (1976), na canção Gota d’água: E qualquer desatenção, faça não; pode ser a gota d’água.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. (1912). A dinâmica da transferência. In: O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 109-119. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,12).
______-. (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In: O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.163-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,12).
______,_____. (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III). In: O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.175-188. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, 269 p.
MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. 2. ed. Cidade de publicação: Jorge Zahar, 1988, 152 p.
NOTAS DE RODAPÉ
[i] Aluna do curso de Psicologia do Centro universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Graciela Bessa.