“Enquanto sujeito da história, o individuo tem a possibilidade de recriar seu processo de socialização e através dele interferir na realidade social.”
Marilia Gouvêa de Miranda
João Henrique Amaral Fontenelle de Araújo[i]
As universidades veiculam, demasiadamente, teorias norte-americanas e européias, postulados de sujeitos de classe média, que ficam muito aquém de uma realidade experimentada por crianças e jovens de periferia do nosso país.
Cabe à Psicologia intervir na melhoria da qualidade de vida das pessoas distribuídas em aglomerados da cidade e trabalhar nesses indivíduos a visão de mundo. Para um trabalho social, é necessário que os psicólogos estejam capacitados a escutar e trabalhar as demandas dos sujeitos uma a uma, indo além de uma prática clínica, trabalhando com esses sujeitos a interseção de sua história com a história de sua sociedade (Lane, 1988).
O que o Projeto Guernica tem a ver com tudo isso? Do ponto de vista antropológico, o que caracteriza o homem é sua condição como ser social, o que lhe distingue do animal não é a forma de transmissão das informações ou a divisão de trabalho, mas a forma de comunicação cultural, que se dá por meio de símbolos (Laplantine, 1988).
O Projeto Guernica constitui – se em sua maioria por alunos provenientes de aglomerados e periferias, a aproximação desses sujeitos com a arte, permite que eles entrem em contato com os signos da cultura e produzam uma leitura dessa realidade, consequentemente, se afirmam como ser social.
Por optar por uma formação cidadã do sujeito, o Projeto Guernica vai além de um discurso fatalista de inclusão social e permite que seus alunos tenham uma posição crítica diante da realidade que os envolve. Ao trabalhar com uma demanda que está para além de uma escrita de rua, o programa permite a esses jovens que reesignifiquem suas experiências e se responsabilizem por suas escolhas e projetos de vida.
Inúmeros Programas Sociais destinados a jovens de periferia se baseiam em oficinas de Grafite, transformando, assim, o Grafite em uma pedagogia. São norteados por uma utopia, na qual o Grafite serve para determinados sujeitos, provenientes de determinadas regiões e situações, não fornecendo, assim, autonomia para esses sujeitos. Acabam por estigmatizar esses sujeitos e a própria arte.
Por trabalhar com conceitos provenientes de diversas áreas do saber, o Guernica vai além de um discurso ativista, que utiliza o grafite apenas como prática de denúncia de injustiças sociais.
A eficácia do Projeto Guernica consiste na escolha de seus temas, que não foi feita de forma aleatória, e sim embasada em uma escuta com pichadores, grafiteiros e profissionais de diversas áreas.
Trabalhando com esse público conceitos vindos das artes plásticas e do urbanismo, o programa permite que esses sujeitos se desvinculem de um discurso estereotipado, busquem endereçamento para suas demandas, e, conseqüentemente, tenham uma participação responsável na vida da cidade, o que faz com que o programa seja um meio e não um fim.
Paulo Freire (1979) nos mostra que seu método não é apenas uma técnica pedagógica, mas um modelo de trabalho de aproximação às classes populares, abrindo os olhos do sistema educacional para a dominação e alienação que alguns indivíduos sofrem de sua própria cultura.
Pensar em algum tipo de intervenção com crianças e jovens de periferia consiste em ter um olhar para além de serviços assistenciais e desenvolver uma programação simultânea, que leve cultura a esses sujeitos.
Para Giddens (1997), é fundamental resgatar no sujeito o exercício de cidadania responsável, o autor afirma que, contemporaneamente, pensar em algum tipo de trabalho no âmbito do social consiste, obrigatoriamente, em trabalhar conceitos de cidadania para a formação de indivíduos emocionalmente competentes e responsáveis.
O processo de globalização oprime culturas periféricas, não possibilitando que esses sujeitos se integrem na sociedade como atores. Assim, é necessário trabalhar o imaginário desses sujeitos para que possam se implicar de forma ativa na sociedade a qual pertencem. Por imaginário entendemos a relação que o sujeito estabelece com seu semelhante, o que propicia a esse sujeito construir um discurso de si e do mundo que o cerca.
Paulo Freire contribui para esse pensamento ao afirmar que:
[…] o processo de orientação dos seres humanos no mundo envolve não apenas a associação de imagens sensoriais, mas, sobretudo, pensamento, linguagem; envolve desejo, trabalho – ação transformadora sobre o mundo, de que resulta o conhecimento do mundo transformado. Este processo de orientação dos seres humanos no mundo não pode ser compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente subjetivista; de outro de um ângulo objetivista mecanicista (FREIRE, 1982, p. 42).
O que o autor nos ensina é que não podemos construir um saber sobre o social, abstraindo de contextos históricos, econômicos e culturais, em que os sujeitos estão efetivamente inseridos.
Conforme Laplantine (1988), as práticas simbólicas são fundadoras da ordem social. Em aglomerados e periferias, a escola é quase sempre a única instituição pública ali presente, que se prende a metodologias arcaicas e está muito longe do verdadeiro propósito que a escola deveria ter; a formação da pessoa.
A aproximação desse público, com diversas atividades artísticas, permite que esses sujeitos tenham maior destreza para lidar com essa situação de submissão imposta pela sociedade globalizada, ajudando, assim, na conscientização da identidade psicossocial desses (Lane, 1988).
De acordo com a tese desenvolvida com base no projeto, feita por Maria Inês Lodi, por priorizar uma circulação de discursos, o Guernica vai além de uma ilusão mercadológica, no que se refere à formação de profissionais e à prática assistencialista, pois convida o sujeito para participar de forma ativa em questões relacionadas a políticas públicas e, consequentemente, possibilita aos seus alunos uma abertura em seus trajetos de vida.
O Projeto Guernica mostra que é necessário que o sistema educacional se desvincule de uma posição detentora de saber, regido em demasia por dogmas e teorias, e invista em um espaço que possibilite ao sujeito construir um saber sobre si e sobre o mundo que o cerca.
Referências
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1979.
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
LANE, Silvia T.M. Psicologia social: o homem em movimento. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. 3 ed. São Paulo: Brasiliense. 1987.
LODI, Maria Inês. A escrita da rua e o poder publico no Projeto Guernica 2003. Dissertação (Mestrado em ciências Sociais) Pontifícia Universidade Católica de minas Gerais. Belo Horizonte 2003.
NOTA DE RODAPÉ
[i] Aluno do curso de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pelo professor Marcelo de Mata Castro.