Introduzir o sujeito lá onde está o homem, o cidadão, o mental, o indivíduo, é fazer com que o paciente, ou seja, aquele que sofre os efeitos da estrutura, possa desafiar os fios da sua patologia.
(QUINET, 2000, p. 9)
Bárbara Coelho Ferreira[i]
A partir do movimento de Reforma Psiquiátrica, a clínica da psicose é convocada a ocupar um lugar de escuta das demandas trazidas pelos pacientes, para que assim possa proporcionar ao sujeito formas de tratamento que preservem a sua subjetividade, responsabilidade, autonomia e, ao mesmo tempo, deve promover a construção de um laço social da loucura com a cidade. Considerando-se os dispositivos que atuam com esse propósito, destaca-se o Acompanhamento Terapêutico (AT).
Com o objetivo de ilustrar a prática do AT, apresenta-se o relato de caso do paciente João Carlos[ii], 34 anos, artesão, mineiro natural de Belo Horizonte. O paciente é acompanhado pela Casa Pai-PJ desde 2002, pois responde a um processo por ter exibido o pênis e se masturbado na portaria do prédio onde reside, ferindo o disposto no incurso do art. 233 do Código Penal Brasileiro, por prática de ato obsceno em lugar público. João Carlos foi considerado inimputável, conforme laudo de insanidade mental emitido pelo Instituto Médico Legal após exame realizado, que o considerou portador de sofrimento mental orgânico crônico, no momento do ato. Considerado incapaz de entender e determinar sua ação, segundo a psiquiatria forense, foi absolvido e a ele aplicada a Medida de Segurança Ambulatorial, em substituição à pena, conforme determina o art. 386 do Código Processo Penal.
A entrada do acompanhamento terapêutico, no caso do paciente João Carlos, ocorreu devido à necessidade do paciente de deslocar-se para tomar seus medicamentos, diariamente, até o posto de saúde próximo de sua casa. Sendo assim, criou-se uma rede de AT’s, já que o paciente teria que ir ao posto de saúde duas vezes por dia, todos os dias da semana.
Com relação a esse dispositivo da Saúde Mental, tem-se que a sua prática iniciou-se dentro das instituições psiquiátricas, por volta dos anos 80, sendo que, naquele contexto, o AT era denominado auxiliar psiquiátrico, o que demarcava uma relação hierárquica diante da psiquiatria. Segundo Ribeiro (2002), “a mudança do nome vem não só dar um testemunho de modificações na clínica da psicose como também cobrar do acompanhante o seu novo endereço, ou seja, o lugar onde ele se situa nessa clínica e de onde ele fala”.
Logo no início do acompanhamento, percebe-se a demanda manifestada por João Carlos diante da proposta de tratamento, já que o mesmo ressalta a importância de ter um acompanhante que o leve até o posto de saúde, pois, de acordo com relatos de João Carlos, ele precisa ter segurança para realizar o trajeto, uma vez que possui epilepsia e é portador de sofrimento mental, além do fato de se sentir bem tendo alguém para escutá-lo e, segundo ele, dar uns “conselhos”.
É importante ressaltar que a demanda do paciente e sua implicação na forma de tratamento proposta é um fator primordial para que o sujeito seja favorecido, e para que haja resultados satisfatórios na condução do caso. O tratamento supõe a implicação do paciente como membro ativo da equipe de cuidado e sua progressiva autonomização em relação a essa. Lacan (1955-6, citado por Ribeiro 2002)
nos advertiu sobre a importância das entrevistas preliminares em análise, no sentido de que uma demanda nunca deve ser aceita em estado bruto, e, sim, interrogada, consistindo essa interrogação numa implicação do sujeito em relação ao seu sintoma ou àquilo de que ele se queixa, re-situando sua responsabilidade essencial no que lhe ocorre, passando a queixar-se de si mesmo, o que foi chamado por Lacan de “retificação subjetiva”.
João Carlos relata nos primeiros AT’s que não sai com ninguém, somente com sua mãe e os ATs, pois sabe que eles obedecem às ordens de seu psicólogo da Casa PAI-PJ. Fala: “um dia um sobrinho me chamou para passear no centro da cidade, mais eu não fui, já pensou se ele me deixa para trás”. De acordo com Ribeiro (2002), a função do acompanhante é ser um mediador, intervindo nas situações do cotidiano do paciente, principalmente, nos momentos de crise. É “caminhar” ao lado do paciente, ajudando na tomada de decisões, resolução de problemas, permitindo que o trabalho de análise prossiga na “outra cena”.A clínica do AT propõe um novo setting para a escuta do paciente psicótico, é uma prática que ultrapassa os muros da instituição e promove um enlaçamento do sujeito com a cidade. Segundo Palombini ,
o AT é uma função emblemática da mistura e contágio das disciplinas psi com o espaço e tempo da cidade. E o seu exercício − que se dá entre lugares, entre o serviço e a rua, entre o quarto e a sala, fora de lugar, a céu aberto − presentifica uma exigência que a reforma psiquiátrica vem colocar aos seus profissionais, seja qual for o dispositivo em causa: o fato de que uma clínica a serviço dos processos de desinstitucionalização coloca em jogo a desinstitucionalização da clínica mesma. (PALOMBINI, 2007, p.132).
Durante o acompanhamento, João Carlos questiona a privação de sua “liberdade” pelo fato de ter cometido um ato sem muita gravidade e ainda estar respondendo processo. Segundo ele: “tem neguinho ai que mata, fica preso dois anos, que é traficante e fica preso cinco anos, e eu estou a dez anos com este processo. Dez anos é uma vida”. Ele enfatiza o término do processo e diz que está quase livre e desimpedido para fazer as suas coisas, já que o encerramento do processo se dará no final deste ano. O paciente também apresenta certa inquietação no que diz respeito aos assuntos relacionados ao direito e à justiça, sendo que isso se apresenta de forma clara em suas falas, já que João Carlos, diversas vezes, nos indaga, com perguntas relativas ao que significa a lei, a ordem e a norma. O paciente busca saber a nossa opinião sobre esses aspectos, já que o mesmo se mostra intrigado com relação a isso, e fala: “Lei é Lei Norma é Norma, Justiça é Justiça e Paciência e paciência, e não é todo mundo que tem”.
É importante considerar que a relação da loucura com a sociedade traz consigo a marca de uma diferença quanto à forma de lidar com a ordem social. O louco constrói uma forma particular de lidar com as normas sociais, na qual a dialética simbólica é substituída pela liberdade das coisas. De acordo com Guerra (2004, p. 47) “mesmo inserido na cultura, na linguagem e no cotidiano, o louco não se encontra submetido às mesmas normas simbólicas de organização, por conta de sua constituição”.
O sujeito psicótico, não passando pela inscrição na lei simbólica, é colocado num lugar de impedimento de toda a transferência de sentido para sua vida e com o meio social, e a função do AT é propiciar uma amarração do sujeito com a sociedade. Segundo Palombini (2007, p. 146), “acompanhar a loucura é, nesse sentido, acompanhar também ao Outro, ao que, da cultura, manifesta-se como negação da diferença, recusando-se à estranheza do laço que a psicose intenta”.
João Carlos fala muito de sua relação com seus familiares. Conta que mora com a mãe, possui cinco irmãs e que moram todos em Belo Horizonte. Possui uma outra irmã, por parte de pai, que mora numa cidade do interior. O paciente relata que a última vez que viu o seu pai foi aos 12 anos. Enfatiza que o pai já foi militar, advogado, delegado e que a sua irmã, que é mais nova do que ele, tem 25 anos, e já é advogada. O paciente diz que ele não é nada, não tem nada e quer ter os seus direitos, os direitos que vêm do pai. Ele recebe uma pensão, porém esta quantia é controlada por sua mãe. Fala que metade do dinheiro pertence a ele, mas que não tem acesso a esse dinheiro da forma como deveria.
O paciente relata, com muita preocupação, a possibilidade de não poder contar com os pais no futuro. João Carlos indaga sobre o que acontecerá com ele se, de fato, ocorrer a morte dos pais. Não sabe quem vai “olhar” por ele, sendo que, muitas vezes, indica que, neste caso, os responsáveis serão os lugares em que faz tratamento, a Casa PAI-PJ e o CERSAM. Em um dos atendimentos, diz: “Quando minha mãe morrer é a casa PAI-PJ que vai cuidar de mim”. As intervenções neste momento, quase sempre, apontam para possibilidade de cuidar de si, para a responsabilização do paciente, mesmo que precise do apoio dessas instituições.
Em certo momento do acompanhamento terapêutico, começamos a declinar a freqüência dos estagiários, em alguns dias da semana; João Carlos passa a ser convocado a constituir seu caminho, agora sem a presença do AT. O paciente demonstra certa indignação com tal situação, alegando que não pode ir sozinho ao posto de saúde. Reclama que não foi esse o combinado, mas é lembrado que, em nenhum momento, foi dito que todos os dias haveria acompanhantes. Ressalta a questão de ter epilepsia e “problema de cabeça”, diz que precisa ter a sua segurança, e que pode acontecer algo com ele se estiver sozinho, e aí não terá ninguém para ajudá-lo. Neste momento, é pontuado que, nas várias vezes em que foi ao posto de saúde, este trajeto foi realizado com tranqüilidade, sem maiores contratempos, com o objetivo de convocar a autonomização do paciente.
Durante vários dias, João Carlos relata que isto não está certo e que ele queria que esse acompanhamento seguisse uma linha. O paciente chega a sugerir que eu deveria acompanhá-lo todos os dias, pela manhã e à tarde, pois, do jeito que está acontecendo, não está dando certo. Pontuo que não tenho disponibilidade para acompanhá-lo dessa forma, pois tenho outras atividades, e que ele deveria arrumar uma outra saída diante dessa situação.
Neste momento, pode-se analisar a questão da transferência no caso de João Carlos já que o paciente convida o AT para ocupar o lugar do Outro que poderia suprir o buraco do simbólico, sendo que essa demanda não deve ser atendida. A manobra da transferência com o psicótico precisa ser operada num sentido de esvaziamento. Segundo Mendes (2005, p.22), “manobrar a transferência é dirigi-la com o objetivo estratégico de propiciar um limite a essas experiências que invadem o psicótico, deixando-o sem opção de qualquer resposta”.
É notável a implicação do paciente em seu tratamento, já que o mesmo repete, por várias vezes, a necessidade de tomar sua medicação e a importância da mesma para a sua melhora. Fala que seus remédios são controlados e precisa seguir à risca. Por isso precisa da presença do acompanhante para testemunhar tudo o que acontece no posto, convoca o AT neste lugar, como alguém que possa garantir a fidedignidade de seus relatos. É pontuado com ele que não é necessário esta comprovação, e que seus relatos são suficientes para a equipe da Casa PAI-PJ.
Orientados pela psicanálise, o acompanhante se situa como “testemunho” e “secretário”, como disse Lacan, não colocando em dúvida os dizeres do psicótico, nem verificando a veracidade de seu discurso em termos dos “dados da realidade”. O que se oferece aqui ao psicótico é uma possibilidade de falar sem ser rejeitado, de não estar tão só. Paralelamente, o acompanhante age sobre a palavra delirante marcando seus limites e fazendo surgir furos, ou seja, nem tudo pode ser atribuído ao Outro. (RIBEIRO,2002)
Diante dessa situação, João Carlos passa a dizer que não vai mais esperar os ATs, se eles não chegarem na hora combinada, vai sozinho. Diz: “Não é que eu quero dispensar os ATs, não estou achando ruim, mas já sei ir ao posto, na hora combinada, posso fazer este caminho sozinho”. Neste momento, pontuo que ele pode combinar com os ATs outras atividades, já que esta ele já realiza muito bem. Lentamente, os acompanhantes têm saído de cena para que novos projetos possam aparecer.
O movimento da clínica do AT é aquele que segue os passos do movimento da Reforma Psiquiátrica, já que se trata de uma clínica que trabalha em prol da construção da cidadania, cujos militantes buscam fazer circular no tecido social as indagações e os impasses suscitados pelo convívio com a loucura. É neste sentido que, de acordo Guerra e Milagres (2005), o acompanhamento terapêutico é a clínica do detalhe, do acontecimento, do ato, em que qualquer manejo é sempre, a priori, a construção de uma nova possibilidade de deslocamento, a construção do inédito na aposta do imprevisível como alternativa à institucionalização do louco e da loucura pelas amarras ideológicas e estruturais com as quais cada psicótico, à sua maneira, tenta se haver para estar na vida da melhor maneira que lhe for possível.
REFERÊNCIAS
GUERRA, Andréa Máris Campos. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In: FIGUEIREDO, Ana Cristina (Org.). Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004. p.23-58.
GUERRA, Andréa Máris Campos e MILAGRES, Andréa Franco. Com quantos paus se faz um acompanhamento terapêutico?: contribuições da psicanálise a essa clínica em construção. Estilos clin. [online]. dez. 2005, vol.10, no.19 [citado 22 Outubro 2008], p.60-83. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282005000200004&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1415-7128. Acesso em: 20/10/2008.
LOBOSQUE, Ana Marta. Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos. São Paulo: Hucitec, 1997. 96 p.
MENDES, Aline Aguiar. Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental rev. (Barbacena). [online]. Jun. 2005, p. 15-28. Disponível em: http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/mental/v3n4/v3n4a02.pdf.
PALOMBINI, Analice de Lima. Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica. Psicol. rev. (Belo Horizonte). [online]. dez. 2006, vol.12, no.20 [citado 22 Outubro 2008], p.273-275. Disponível em:<http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682006000200012&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1677-1168. Acesso em: 18/10/2008.
QUINET, A. Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2ªed., 2000. 238p.
RIBEIRO, Thais da Cruz Carneiro. Acompanhar é uma barra: considerações teóricas e clínicas sobre o acompanhamento psicoterapêutico. Psicol. cienc. prof. [online]. jun. 2002, vol.22, no.2 [citado 22 Octubre 2008], p.78-87. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414 98932002000200010&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.> Acesso em: 18/10/2008.
NOTAS DE RODAPÉ
[i] Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pelo professor Fabrício Ribeiro.
[ii] Nome fictício para preservar a identidade do paciente.